Segundo a Teoria Tridimensional do Direito, tal como a venho expondo em vários livros, notadamente na 5ª edição do que tem aquele título (Editora Saraiva, 1994), a experiência jurídica é constituída por um processo dinâmico e concreto de modelos normativos, os quais representam a integração de fatos sociais segundo múltiplos valores.
O ordenamento jurídico não é, pois, formado por uma série de normas ideais, em função das quais os fatos vão valorativamente se desenvolvendo, mas sim uma realidade concreta de três dimensões que desde o início se correlacionam em unidade plural.
Fatos, valores e normas se coordenam em unidades concretas de ação, as quais se confundem com a própria experiência jurídica. Tais unidades são de natureza histórico-cultural de conformidade com uma dialética de complementaridade, caracterizada pela oposição e polaridade dos elementos que a compõem.
A essa luz, os fatos sociais, que estão na base das regras de direito, não se explicam uns pelos outros de maneira empírica, segundo relações causais de caráter determinista, mas são o resultado de valorações daqueles fatos na forma de estruturas normativas, ou, por outras palavras, de modelos jurídicos, cujo sentido é dado pela integração dialética desses três elementos.
Ora, se toda norma jurídica representa sempre uma integração de fatos segundo valores, é o caso de perguntar como é que essa integração se realiza, e qual é a sua razão determinante. É aqui que se põe a problemática do poder.
O poder tem duplo significado. Ora significa auctoritas, ou seja, o mero poder ou comando do Estado no exercício de sua soberania, tanto nas relações internas como nas internacionais; ora se refere à força que, com a anuência da coletividade, preside o surgimento dos modelos jurídicos.
Fazendo abstração do poder como soberania - matéria de estudo da Teoria do Estado, ou do Direito Constitucional -, vou-me limitar a apreciar o poder como elemento de conexão no processo de formação do direito, observando que, quando um determinado número de valores incide sobre o fato social, dá lugar a várias soluções normativas (por exemplo, vários projetos de lei), uma das quais se converte em norma legal, devido à escolha decisória do Poder. Como se vê, a opção do poder no Estado de Direito não é arbitrária, mas ocorre no âmbito de um processo axiológico global.
Os juristas apegados à compreensão sociológica do Direito entendem que o processo nomogenético resulta da evolução social qua talis, em razão do determinismo causal que lhes seria inerente e que vincularia fatos e valores contrapostos em uma solução normativa. Tudo estaria, em suma, sociologicamente traçado.
Por outro lado, há a solução normativista integral de Hegel, para quem a regra jurídica se põe de per si, pois "o que é vale e o que vale é", desenvolvendo-se dialeticamente o processo normativo, no qual o poder está imanente, dando preeminência ao Estado.
Foi meditando sobre as características do valor (polaridade, realizabilidade, historicidade, etc.) que, no início da década de 1950, contestei a posição idealista de Max Scheller e Nicolai Hartmann, que consideravam os valores objetos ideais. Minha tese fundamental é a de que o valor não pertence ao "mundo do ser", mas sim ao do "dever ser", de conformidade com a doutrina de um novo culturalismo, de acordo com o qual os objetos culturais "são enquanto devem ser".
Pois bem, a realizabilidade dos valores levou-me a compreender que, no processo nomogenético, o valor abre um leque de soluções possíveis, uma das quais é escolhida e positivada pelo poder, tornando-se norma cogente.
À primeira vista, poder-se-ia entender que, na criação de um modelo jurídico, haveria a interferência de um quarto fator, o poder, mas este não opera "ab extra", mas na imanência da oposição fato-valor, sendo a norma o resultado dessa integração fático-axiológica.
Se o poder fosse concebido como simples auctoritas, seria esta, com seu arbítrio ou discricionariedade, a senhora absoluta da nomogênese jurídica, recaindo-se no autoritarismo de Hobbes, de acordo com o qual a opção do legislador por este e não por aquele outro projeto de lei constituiria um ato de escolha unilateral e arbitrário, e não uma posição tomada em função dos livres contrastes havidos entre fatos e valores, como é próprio da democracia.
Por outras palavras, a meu ver, a decisão do poder ocorre no âmbito do processo nomogenético, e representa o triunfo de um dos caminhos decorrentes do valor perante os fatos. No Estado de Direito a escolha não resulta de mero arbítrio, mas de um livre cotejo de valorações em sintonia com os fins visados pela comunidade.
Essa compreensão do poder como momento do processo nomogenético se torna mais transparente quando colocamos o problema da normatividade em razão das fontes do Direito, mostrando que assiste razão a Burdeau, apoiado por Goffredo Telles Júnior, quando escreve que "o poder é a energia da regra".
Devem-se a Hans Kelsen a renovação e o alargamento do conceito de normatividade, mostrando que a norma legal não é a única fonte do Direito, por mais que seja relevante a função do legislador na emanação das regras jurídicas, visto como outras surgem, como as estabelecidas por uma sentença (direito jurisdicional) ou pelos costumes (direito consuetudinário) ou, ainda, por acordo de vontades, como ocorre num contrato (direito negocial).
Nesses quatro processos de instituição de regras jurídicas há interferência, respectivamente, do poder legislativo, do poder jurisdicional, do poder costumeiro e, finalmente, do poder negocial.
O paradoxo da Teoria Pura do Direito kelseniana, na sua versão originária, consistiu na sua identificação inicial entre Estado e Direito, só possível numa concepção idealista do ordenamento jurídico, concebido como uma série hierárquica de modelos ideais, cuja validade dependeria de uma norma transcendental, hipoteticamente pensada. Nessa fase inicial, o seu livro Teoria Geral do Estado era, ao mesmo tempo, Teoria Geral do Direito e do Estado.
Mais tarde, quando ele, fugindo do totalitarismo nazista, se refugiou nos Estados Unidos da América, entrou em contato com o Common Law, que é de natureza consuetudinária e jurisdicional, sendo obrigado a rever sua posição, tanto assim que, em lugar de sua obra principal, Hauptprobleme des Staatsrecheslehere (Problemas Fundamentais da Doutrina Jurídico-Estatal), Tubinga, 1911, publicou novo livro, significativamente denominado Teoria Geral do Direito e do Estado, Cambridge, 1945, que ele teve a gentileza de enviar-me. A palavra Staatsrechslehere expressa bem a identidade kelseniana do Direito com o Estado, tal como era exposto na primeira versão da Teoria Pura do Direito, que, como vimos, ele depois alterou, continuando, porém, a ver o Estado e o Direito como conjuntos distintos de normas, ou seja, sem abandonar seu normativismo integral.
Kelsen acaba, todavia, reconhecendo que o processo nomogenético não se desenvolve apenas no plano da validade, mas também no da eficácia, a qual pressupõe, a meu ver, a interferência do poder, ao optar por um dos valores em jogo. O Estado e o Direito não são, em suma, meras configurações normativas, exatamente porque há o poder que decide em função dos fins que presidem o ordenamento jurídico, sem o que não haveria legitimidade.
É no âmbito dessa compreensão que se demonstra que o poder não é um fator arbitrário que se põe "ab extra", mas sim como momento da nomogênese jurídica, sendo a decisão tomada em face e em razão de uma multiplicidade de valores livremente estabelecidos como é próprio do Estado de Direito.
O Estado de São Paulo (São Paulo) 31/07/2004