À margem do referendo sobre o comércio das armas, confesso minha preocupação com a gente boa deste país. O povo eleito, bacana, politicamente correto, transparente, saudavelmente pra frente, a turma que nos guia e ilumina com seus conselhos e seu comportamento ético, quebrou a cara com a derrota do "sim", mas o caso não é para o desespero e o ranger de dentes, que, aliás, não ficam bem em gente bem e tão boa.
Que será de nós sem eles? A quem recorreremos em nossas misérias cotidianas, nos trancos que levamos da turma do mal, que promove chacinas como a do Carandiru? Quem nos livrará dos Severinos, quem devolverá Maluf à prisão e quem terá coragem de reclamar da voz desafinada do Roberto Jefferson quando se põe a cantar músicas napolitanas?
Não podemos ficar perdidos sem a luminosa bússola do povo eleito, da gente boa que sempre sabe o que é certo e o que devemos fazer. Foi um lamentável acidente de percurso. Sabemos que as forças do mal são numerosas, capazes de tudo. Chupam o sangue das criancinhas, estupram freiras, profanam sepulturas, não cultuam a memória do Vladimir Herzog, roubam a merenda escolar das crianças subnutridas e lavam dinheiro roubado nos paraísos fiscais para se abastecer de armas letais que garantirão o império do mal até a consumação dos séculos.
Muita gente tinha dúvida se Lula era ou não era gente boa. Eu sempre achei que era e é. Tão gente boa que votou no "sim", que, no fundo, era contra ele, principalmente isso, contra ele e seu governo. Confesso que estou acabrunhado com o resultado da consulta na qual não votei e sobre a qual não tinha qualquer opinião, nem contra nem a favor.
Vi nos jornais a foto de uma jovem muito boa, em lágrimas, chorando a vitória do mal. Misturando motivos, ela não entendia como o povo podia ignorar a corrente do bem que se formou para salvar a nação.
Folha de São Paulo (São Paulo) 27/10/2005