Já vaiei um presidente da República; com o AI-2, não tinha onde berrar, a não ser na rua
A VAIA -um lugar-comum bastante usado entre cultas gentes- é o aplauso dos que não gostam. Nesse sentido, pode-se dar razão àquele controvertido provérbio de origem oriental, atribuído pelos eruditos a Confúcio: é preferível ter mau hálito a não ter hálito nenhum. Na certa, por deficiência mental da minha parte, não consegui até hoje compreender os dois anexins (admito que fica até difícil entender o que seja um anexim). O que demonstra que não compreendo muitas coisas neste mundo e que, quanto mais os anos passam, entendo menos e pior.
Razão para a vaia existe, em qualquer ponto do território nacional, perante qualquer autoridade municipal, estadual ou federal, desde o cabo de polícia de Cabrobó até o minuto de silêncio no Maracanã. Mas há razões e desrazões que escapam ao jogo político ou esportivo e passam a fazer parte do drama existencial daquele que vaia alguma coisa ou pessoa. Digo isso e explico aquilo:
Já vaiei um digno presidente da República. Era o Marechal Castelo Branco, e a época foi novembro de 1965. Dias antes, o governo editara o Ato Institucional nº 2, e o número dos que não estavam satisfeitos com a situação era grande. Por ocasião do primeiro Ato Institucional, quem quis e quem pôde berrar contra o sistema fez sua obrigação, e eu fiz a minha. Mas, com o segundo "AI", eu não tinha onde berrar, a não ser na rua.
Em reunião clandestina, onde ninguém se ofenderia se fosse chamado de intelectual, deliberou-se promover uma manifestação pacífica, mas veemente contra o governo, em frente ao Hotel Glória, aqui no Rio. Ali se realizaria uma complicada reunião da Organização dos Estados Americanos, e o marechal-presidente compareceria. Se conseguíssemos vaiá-lo com eficiência, teríamos excelente e bem nutrida platéia internacional.
Durante as chamadas reuniões preparatórias (em qualquer conspiração, essas reuniões são mais importantes do que a própria conspiração), ouvi edificantes argumentos, todos profundos, epistemológicos; a nossa vaia teria transcendentes sentidos morais e gerais. Não faltaram teóricos que, citando Merleau-Ponty e Walter Benjamin, garantiram-me que o nosso movimento seria a primeira investida contra a bastilha. Por Júpiter!, enxotaríamos o arbítrio, arrebentaríamos o sistema com meia-dúzia de pingados gatos à porta do Hotel Glória. Um dos nossos companheiros -que se tornara notável pela profundidade com que descobrira nos sambas do Zé Kéti o resumo das teses de Ricardo que tanto influenciaram Karl Marx- explicou-me com menos notável profundidade o óbvio: nenhum governo resistiria a tanta e tamanha vaia, desfechada diante dos chanceleres das três Américas -que nas três Américas são chamados pelo feio nome de cancileres. Apesar de tanto adjutório, no momento em que me competiu votar (vota-se até na hora de se servir o cafezinho nessas reuniões clandestinas), declarei com inútil solenidade: "Desconfio que essa vaia não resolverá problema algum do país ou do povo. Mas resolve o meu problema".
Nas reuniões preliminares, fui minoria de um só. Todos, exceto eu, garantiam que o regime não suportaria a vaia de uma elite cultural como a deles. Abalaríamos os alicerces do totalitarismo aos gritos de "abaixo a ditadura".
Elementos do velho partidão garantiram a presença de uns cinco mil operários e estudantes, que engrossariam a manifestação, que seria a primeira realmente popular contra o AI- 2, que, no fundo, nem chegava a ter a malignidade do futuro AI-5. Não apareceu um só operário ou estudante, a não ser nós mesmos -que, de certa forma, éramos sociologicamente operários e estudantes.
Foi prevista uma grossa pancadaria entre a polícia e os manifestantes, o que aumentaria a expressão e o tamanho da vaia que iríamos dar. A hipótese de um morto também foi levantada. Não levada a sério, mas possível, no caso da exaltação dos ânimos. Enfim, a ditadura estava não com os dias, mas com as horas contadas.
Lá fui para o Hotel Glória, vaiamos o marechal, fomos presos, trancafiados nas enxovias da Polícia Especial, alguns jornais nos chamaram de moleques e baderneiros, o Partido Comunista nos acusou de pequeno-burgueses, atribuiu-nos inconfessáveis desvios, gramamos dias e noites na pior e, pelo já invocado Júpiter, nenhum problema da nação foi resolvido, a não ser o meu. Garanto que nunca um prisioneiro sentiu tão fortemente, na alma e na carne, o gosto da liberdade.
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/10/2006