Abem da verdade, a palavra “reforma” já não me dizia muita coisa. Desde que me entendo, ouço falar em reformas. Algumas gozam de status especial, como a agrária, cuja menção sempre esculpe semblantes graves nos que a ouvem e gestos de desalento de etiologia diversificada, conforme as convicções do autor dos gestos. Ela é certamente a decana, vê-se logo que não é uma qualquer, tem aquele quê (lembrei agora do tempo em que se falava em “it”; alguém aí ainda manja o “it”? Tudo bem, esqueçam) dos aristocratas, do dinheiro velho e das tradições. Acho que, se chamada a complementar rapidamente o substantivo “reforma”, a grande maioria dos brasileiros, exceção feita a dois ou três dos que me lêem que dirão “do banheiro”, proferirá automaticamente “agrária”. Todo mundo ouve isso desde pequenininho, é uma coisa meio pavloviana, embora Pavlov se tenha celebrizado por pesquisas com cães, não carneiros - mas isto já é outra história.
Claro, não vou desmerecer outras reformas de grande renome e importância, algumas das quais mudaram um pouco ao longo dos anos, enquanto outras são novinhas. Mas a lista não caberia neste espaço e assim, pedindo desculpas pelas injustíssimas mas inevitáveis omissões, menciono apenas a tributária, a previdenciária, a administrativa, a eleitoral, a judiciária e a constitucional, esta última bastante desprestigiada de uns tempos para cá, porque cada vez mais se chega à conclusão de que ninguém precisa de Constituição, que não costuma passar de um trambolho a ser afastado do caminho, quando se tem pressa em resolver alguma coisa sem muita frescura. Temos medidas provisórias à farta disposição e, no setor eu-dou-um-jeito-neles, o dr. Antonio Carlos (aliás, como vai o senhor, há muito não nos falamos; talvez no próximo janeiro, lá na ilha, passando por Mar Grande, eu tente uma visitinha, estou muito por fora das novidades da terra) já está jantando com Lula, o que, dando certo, garante qualquer governo, como sabemos. Está tudo acabando de voltar às mesmas boas mãos de sempre, podem ficar tranqüilos.
Além disso, não é hora de pensar em reformas, é tempo de eleição. Obras públicas, inaugurações, aumentos de salários, colocações, anúncios de prosperidade não testemunhada mas vastamente alegada, essas coisas que vão azeitando a democracia. Até mesmo a preparação da reeleição, pois já se admite que a prioridade não é um projeto de governo, mas um projeto de poder, como parece dar a entender o dr. Dirceu e como demonstra a ávida curiosidade presidencial por mandatos longos, assim de 17 anos para cima. Exige a honestidade que eu reconheça que fui injusto com o dr. Fernando Henrique, quando sugeri que era coisa dele só pensar na reeleição. Não era, não, laborei em pueril equívoco, é coisa de quem sobe ao poder mesmo. Esse negócio de se sacrificar pela nação vicia.
Comentam que têm acontecido algumas reformas, mas ninguém parece haver notado, de maneira que elas voltarão, em seu devido tempo. Por enquanto, segundo leio aqui, sério mesmo, o item mais empolgante ora em votação no Congresso é decidir se monitor de computador se qualifica como eletrodoméstico ou de produto informático, o que talvez pareça pouco importante para nós, o povo, mas, para eles, pode ser tão vital que justifique a viagem de uma comitiva de parlamentares para estudar o assunto em dois meses na Europa, Estados Unidos e Ásia (a que tem ótimos aparelhinhos para comprar, trazer e mostrar em Mombaça, não a fedorenta).
E, além disso, vem aí uma reforma. A partir logo do próximo ano, que se aproxima a passos céleres. Vocês não devem ter lido, já me acomodei ao fato de somente eu ler essas coisas, mas deu no jornal, sim. A Associação Brasileira de Normas Técnicas vai anunciar, agora em outubro, regras para o papel higiênico brasileiro. É isso mesmo que estou lhes dizendo, dentro em breve poderemos olhar para a cara (ou seu oposto, conforme as circunstâncias) de qualquer cidadão do metidíssimo Primeiro Mundo e proclamar que o nosso papel higiênico, que já conta com algumas marcas de nível internacional, não fica nada a dever aos melhores do planeta e talvez seja, no geral, o melhor. Até porque - calem-se novamente os catastrofistas - o Brasil será o primeiro país do mundo a adotar normas para papel higiênico. Daqui a pouco poderemos contar prosa no “Fantástico” sobre como tal ou qual celebridade internacional só usa papel higiênico mandado buscar diretamente do Brasil e saber que, quando outra celebridade quer limpar-se com categoria, se segura como pode, pega o jatinho e vem para o Brasil, referência mundial em limpeza traseira. Veremos a fundação do suntuoso e fechadíssimo GoldenAssWipersClub na Barra da Tijuca, recebendo, a peso d’oiro, aficionados de todo o orbe?
Diz também a nota que não vão esquecer nada, do picote a itens como a capacidade de absorção de água, tração, maciez e inúmeros outros quesitos. Acredito que nem mesmo a turma do bidê, conhecida pelo seu reacionarismo fanático a respeito dessa delicada questão, vai deixar de manifestar orgulho pelo nosso feito. É bem verdade que a ABNT, que eu saiba, não é do governo, mas é brasileira a começar do nome e pode até integrar-se nessa Parceria Público-Privada (faz sentido) de que tanto falam. E o presidente já cansou de dizer: o governo faz a parte dele, tirando o nosso dinheiro, e nós fazemos a nossa, entregando o nosso dinheiro. Não sei se haverá o papel higiênico participativo, o Cocô Zero, a Contribuição Provisória (Permanente) Sobre Evacuação ou a criação da Comissão Federal de Higienização Íntima, com seu presidente no status de ministro - pois, afinal, onde comem 36, comem 37. E tem de ser reconhecido, por maior a má vontade: a reforma está aí mesmo e ninguém poderá alegar que qualquer outra afetará mais as nossas bases do que ela.
O Globo (Rio de Janeiro) 19/09/2004