Vamos cada vez mais às urnas, sob dois comandos. Rege as nossas preferências a absoluta definição de pesquisas entregando-nos à fatalidade dos jogos já feitos por antecipação. Em princípio ganhará quem já está na frente, e é por estes índices que se organizam as chapas, formam-se as coalizões e desbanca-se toda a veleidade de candidatura do "bolso do colete", ou de maiorias silenciosas, correndo por fora dos boletins da preferência, semana por semana, demonstrada previamente pelo eleitorado. Torna-se um anacronismo patético, um não se acreditar nesses números entrados de vez no círculo vicioso dos próximos resultados eleitorais: vota-se engrossando o que, já por antecipação, fizeram dos ibopes a voz das parcas e o recorte inevitável do futuro.
É como se, lance a lance, os incidentes de campanha, os esforços de palanque ou da mídia se debatessem - via de regra, em vão - contra os fatos praticamente consumados das sondagens. É por isso mesmo que a busca das preferências eleitorais, capazes de lutar contra a maré, vai a eixos sumários de escolha, somando ou fazendo frente, na sua força de gravidade-limite, ao que as pesquisas já transformaram numa pré-eleição. O dia das urnas se transforma quase em mero plebiscito, ou sanção das sondagens prévias, deixando o eleitor diante de um dilema desequilibrado: sancionar o óbvio - e aí se soma, oportunamente, ao favorito - ou surpreender os deuses no voto quixotesco e protesto contra as sortes lançadas.
Incertezas
Claro que podem ainda remanescer incertezas imprecisas num coeficiente de real indefinição até o dia do pleito. Ou das manobras de ultimíssima hora de coalizões inesperadas ou retiradas de candidatura. Mas no grosso dos resultados a ida às urnas se contaminou desta decisão antecipada, de para onde vai a maioria, mormente quando o bordão das prévias já tange um sentimento popular. É como se o momento bruto do pré-alinhamento, perscrutado meses antes, fizesse a bola de neve, a que reagem, já, semicondenados, os jogos políticos, quando aberta formalmente à campanha eleitoral.
O segundo turno restaura a margem de liberdade-surpresa, eliminando o rito sonâmbulo da primeira rodada. E, sobretudo, amarra o novo voto a um sentimento muito mais profundo do que faça uma consciência política, respondendo a valores como o da identidade básica do eleitor, ou do seu repúdio sumário às candidaturas sobreviventes. É esta a franja que se comanda pelo inconsciente coletivo e seus irracionais por sobre os programas partidários, ou uma aritmética de coalizões que discrepe do voto dilemático de cada cidadão.
A força partidária não magnetiza o segundo turno e, sim, uma opção primária, deixada em seu estado selvagem à escolha de última hora do eleitor, muitas vezes sequer consciente de que é este seu verdadeiro trunfo, resgatado à máquina do processo político nacional. Em nosso caso, esta identidade elementar já desde agora se vê trabalhada pelo nível de força simbólica que evidencie as mais prováveis candidaturas à frente, no próximo 6 de outubro.
Ao chegar a decisão final, impele o eleitor o sentimento de mudança que Lula protagonizou não sem ter feito o esforço da maior pedagogia de buscar uma convergência de centro esquerda, decidida a emprestar um claro pluralismo de tendências a sua futura proposta de governo. Trará às urnas no segundo turno os afluentes do PSP de Roberto Freire, ou do PSB do totem Miguel Arraes, recuperados do assalto de descaracterização ideológica, no abraço da forra de ACM e do aleluia evengélico de Garotinho.
Não nos esqueçamos ainda de um sentimento social democrata espalhado na Sociedade Civil que, para além da legenda tucana, vê hoje, no passo de Lula, o acerto de bússola do que seja globalmente a alternativa ao neoliberalismo, cada vez mais insensível pertíssimo de nós ao funeral argentino. E quando Serra dá 7,5 ao atual Governo mostra o desejo, homologado pelo Planalto, de garantir ao eleitor votar no sistema sem comprar-lhe a mesmice. Nem se cogita mais de engolir o situacionismo sem maquiagem, confiando no horror do outro lado, na crença dos bens pensantes de há uma década.
Manipulação
O jogo especulativo nas bolsas estrangeiras contra a imagem no País unificou, inclusive, Serra e Lula no repúdio à mais crassa manipulação do risco Brasil. Identificaram-se, aí, por mais que redobrem as diferenças numa luta para manter um jogo de equidistâncias. Ou melhor, de reconhecer o cansaço intrínseco de um regime, independentemente de seu sucesso, ou do que definitivamente assentou a estabilidade econômica e democrática do País.
O segundo turno não se entregará aos estertores do pânico ou do voto-cruzado. Mesmo com o trunfo que queira guardar Garotinho, de manter empolgado um voto religioso, e cada vez mais tal. Isso se o candidato não recuar para contrapor-se, no seu quintal, à ascensão de Benedita, se ainda tiver tempo. De toda forma, os 43% de Lula não o tiram da visão crítica do que há, ainda, de coceira mediática na subida antecipada da oposição ao que possa ainda manter de trunfos a candidatura Serra. Mas uma consciência política amadurecida encontra, então, de maneira igualmente inequívoca, o óbvio do optar pela mudança contra o da certeza de um legítimo reformismo sem mesmice.
Fique, a bem do candidato do Planalto, a carranca e a catadura da severidade a empurrar o eleitor às urnas, independentemente dos fascínios fáceis do carisma. Nem encarne Lula o sentimento de ser o dono da vez, confundindo a convergência com o excesso de desarme de sua proposta política. O talvegue da mudança não é uma conta de chegar a um centro simétrico e inodoro.
Jornal do Commercio (RJ) 17/5/2002