Amsterdã um dos lugares de visita obrigatórios é a Casa de Anne Frank. Fui lá algumas vezes. De início, o que havia para ver era o anexo em que Anne viveu; depois, o lugar foi se transformando num museu, com uma completa exposição. E, ao mesmo tempo, atraía cada vez mais gente. Na última visita era até difícil caminhar por ali.
O que é uma boa coisa. Evocar a figura de Anne Frank é essencial, não só por causa das tentativas de negação do Holocausto, a mais recente das quais foi empreendida por ninguém menos que o presidente do Irã (imaginem o que esse homem faria se dispusesse de uma bomba atômica). E agora há uma boa oportunidade para isso, com a excelente exposição que está sendo mostrada na Usina do Gasômetro, bem mais próxima do que Amsterdã. É uma impressionante incursão no passado nazista através de fotos, de cartas, de documentos e de uma reconstituição do anexo.
Quando Hitler ascendeu ao poder, Otto Frank e a mulher fugiram da Alemanha com as filhas e foram para Amsterdã. Não adiantou: a Holanda foi ocupada pelos nazistas e, em 1942, começaram as deportações dos judeus para campos de concentração. Com outras quatro pessoas, a família Frank escondeu-se no anexo que ficava atrás do prédio em que Otto Frank tinha escritório e ali viveu confinada por dois anos. Durante o dia, eles não podiam sequer falar, para não serem descobertos. Era pior que uma prisão, e não os salvou: denunciados, foram encontrados pelos nazistas e levados para os campos de extermínio, onde Anne, a mãe e a irmã Margot morreram.
Durante o tempo em que viveu no anexo, Anne escreveu um diário, que depois da guerra foi publicado. É uma leitura tão reveladora quanto comovente. Anne fala, claro, da perseguição aos judeus, mas mostra que, mesmo naquelas duras circunstâncias, as pessoas continuam tendo emoções, continuam amando e odiando. Há uma passagem particularmente pungente. Ela conta que, aos sábados, a secretária de Otto Frank, Miep Gies, trazia-lhes livros, que eram ansiosamente aguardados por Anne: "As pessoas que levam uma vida normal não sabem o que os livros podem significar". Miep Gies, aliás, foi um anjo da guarda para a família Frank, providenciando alimento e ajudando no que podia. Depois da guerra, declarou: "Não sou uma heroína, sou apenas uma pessoa comum. Simplesmente me dispus a fazer o que me foi pedido".
Uma frase que é um verdadeiro preceito ético. Temos de nos dispor a fazer aquilo que a vida nos pede; aí estaremos cumprindo nossa missão como seres humanos. A vida pedia a Anne que, naquela dura situação, lesse livros e escrevesse o diário. E ela o fez. Deixou-nos um documento dilacerante. O líder sul-africano Nelson Mandela, que leu o diário de Anne Frank enquanto estava na prisão, disse que o texto o estimulou a lutar contra o apartheid. Regimes totalitários, afirmou, não são tão fortes quanto parecem; mesmo pessoas frágeis como Anne Frank podem desafiá-los. Este desafio, resumido na frase famosa de Anne Frank: "A despeito de tudo, ainda acredito que no fundo as pessoas são boas", fica para nós como uma inolvidável lição de vida.
Zero Hora (RS) 20/4/2008