Se a intenção da curadoria da 28ª Bienal de São Paulo era dar visibilidade à crise do modelo das bienais, o resultado foi plenamente alcançado. O vazio do segundo andar, que representaria a tal crise, recebeu muito mais elogios de artistas e curadores do que a mostra de arte apresentada no terceiro andar, marcada pelo tom conceitual.
PARA MUITAS pessoas o espaço vazio da Bienal é um tema interessante para uma discussão artística e intelectual: o que, afinal, significa a arte, em que medida a imaginação e a inteligência das pessoas devem ser mobilizadas para compreender o que aparentemente é incompreensível etc.
Mas existe alguém que vê o espaço vazio não apenas como um mistério, mas até como uma ameaça.
É um dos vigilantes do prédio. Ele tem uma fantasia. Será pelo fato de prestar serviços em um lugar classicamente associado à imaginação criadora? Ele não sabe. O certo é que tem uma fantasia, um devaneio -que, na verdade, e como já se verá, atenderia melhor pelo nome de pesadelo.
Nessa fantasia, ele está, tarde da noite, diante do prédio da Bienal cumprindo seu dever de vigilante. Tudo parece calmo, mas ele tem um pressentimento de que algo vai acontecer. E algo acontece: de repente surge, diante dele, uma pequena multidão: homens, mulheres, crianças. Gente pobre, maltrapilha, vários deles empurrando velhos carrinhos de supermercado com colchões, panelas, roupas. Alarmado, o vigilante pergunta o que querem. Não respondem, mas então aparece um homem jovem, simpático, longos cabelos, roupa estranha, mas elegante. "Sou um artista", ele diz e acrescenta: "Estes que aqui estão são meus colaboradores". Melhor dizendo, senhor vigilante, eles são a matéria-prima com a qual eu vou construir minha obra de arte. Uma instalação."
Uma instalação? O vigilante não tem a menor idéia do que vem a ser isso, mas, por outro lado, tem vergonha de perguntar, mesmo porque a presença do artista o intimida. Percebendo-o, o jovem ri e explica que uma instalação é uma obra de arte um pouco diferente, não é um quadro, não é uma escultura, é outra coisa. Uma coisa que tem de ser montada e ele vai montá-la, bastando para isso que a porta seja aberta.
Depois de uma pequena hesitação o vigilante -que diabo, nunca vou entender esses artistas- abre a porta. A multidão entra, corre para o segundo andar e, num instante, o grande espaço vazio está ocupado. Colchões são colocados no chão, um varal de roupas é estendido, comida é aquecida em pequenas fogueiras. O artista observa, atento, e de vez em quando dá instruções: "Vocês aí no fundo, não se afastem tanto, não esqueçam de que o conjunto é fundamental". Finalmente, satisfeito, coloca um cartaz em uma coluna, com os dizeres: "Instalação: o vazio ocupado".
Na sua fantasia, o vigilante fica ali, inerme, sem saber o que dizer, sem saber o que fazer. De manhã, pessoas virão e esclarecerão a dúvida: é aquilo mesmo uma obra de arte?
Na sua fantasia, essas são horas de apreensão, de sofrimento mesmo. É com alívio que ele vê a noite passar sem que ninguém apareça. Um dia a Bienal terminará e, com ela, seu pesadelo.
Folha de S. Paulo (SP) 03/11/2008