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Uma fábula de nosso tempo

 

Quando criança, havia um tipo detestável no meu bairro. Carmelo. Sujeito desagradável, prepotente. Como era forte, as pessoas o evitavam, mas ele se metia em tudo e chefiava um bando, ajudado por seus primos Energúmeno, Carlota e Fifuca. Carmelo era maldoso, andava com o nariz escorrendo e, quando você estava na sorveteria, ele, de propósito, chegava e tossia ou espirrava em cima do seu sorvete. Bagunceiro, rebelde, tinha sido expulso de todas as escolas e se vangloriava. Onde Carmelo estava, ali estavam seus primos, conhecidos como turminha do ódio. Muitas vezes, os quatro agarravam um moleque franzino, levavam para um terreno baldio e passavam horas a machucá-lo com tabefes e socos. Ou pegando galhos de roseira cheios de espinhos e laceravam a pele do infeliz. Quem orientava as maldades era um garoto de nome estranho, Lustro (ele odiava quando diziam Lustre), que vivia a maltratar os outros. Adiantava reclamar? 

O pior do Carmelo é que tudo que ele afirmava hoje, negava amanhã. Se dissesse besteira de manhã, negava à tarde. Dizia e desdizia. Logo, teve um apelido que permaneceu por largo tempo: “Carmelo obra para trás”. A palavra não era exatamente obrar, vocês devem conhecer a verdadeira. É que gente educada não usava o sinônimo vulgar de evacuar. Defecar também era feio. Diziam obrar, para não ofender. Obrar, ato que todos praticam por necessidade fisiológica, era um eufemismo, aprendemos com o Jurandir, professor de português. 

O outro termo que começava com C não era suave nem poético nem elegante. Na vida, devíamos usar palavras amenas para definir pessoas, mesmo que elas fossem péssimas, maus-caracteres, mal-educadas, grosseiras. Assim, quando o Carmelo afirmava e não confirmava, ele estava obrando para trás. Obrava para trás o tempo inteiro e ria disso. Evacuando para trás. Ou seja, não se podia confiar nele. Traduzia-se: fala e não sustenta, portanto a palavra dele equivalia a matéria fecal. 

Havia outra definição para gente como Carmelo. Quem dizia e não sustentava, também era conhecido como frouxo, fresco, maricas, fronha ou fruta. Ou molenga, sujeito sem-palavra. Minha mãe, mulher piedosa e boa, tinha uma frase que ainda costumo usar para definir certas pessoas. “O Carmelo falar e um burro obrar, para mim é igual.” Os antigos sabiam das coisas. Havia educação e bons modos.

Como era forte, Carmelo não era desafiado para nada. Ninguém dizia essas coisas na frente dele. Era violento. Quando alguém comentava: mas ontem você disse outra coisa, ele reagia, brutal: “Acha que sou cara de pedir penico? Digo e desdigo o que eu quiser. Quem é o mais forte aqui, pô? Eu que mando, pô! Se duvidar, tiro você do bando, expulso, você não vai mais poder andar pela rua, comunistinha de merda, pô! Isso, posso te demitir”. A gente era pequeno, não tinha ideia do que significava demitir, mas devia ser coisa ruim, dita pelo Carmelo.

Comunistinha? Naqueles anos 40, nunca tínhamos ouvido aquela palavra. Quem sabia? Perguntamos ao Zé da Pinga, que ficava sentado na soleira do bar do Tito Tobias, e ele, amicíssimo do Carmelo, respondia com palavrões e mandava a gente perguntar para as éguas lazarentas que eram nossas mães. Aliás, a turminha do Carmelo gostava de xingar as mães da gente e tínhamos de ficar quietos. Somente décadas mais tarde soube o que era comunista. Parece que eram antropófagos, que comiam criancinhas, que horror.

Cresci, mudei de bairro, esqueci Carmelo, vim para São Paulo, fiz minha vida, família, o normal. Dia desses, ao voltar à minha cidadezinha, passei por um boteco malacafento e achei que conhecia o velho, de bermudão, sandálias semiapodrecidas e camiseta furada de um time da 20.ª Divisão do Brasileirão, que tomava rabo de galo. É o Carmelo, revelou o dono do bar. Lembra-se? O que evacua para trás? Continua igual, foi expulso do Tiro de Guerra, nunca deu certo na vida. Passa o dia sentado a esbravejar. Ninguém mais ouve nem fica perto. Morador de rua, não toma banho, cheira mal, garante que vai ser prefeito. Ao ouvir isso, Carmelo gritou lá de sua mesa, tossindo muito e, coisa nojenta, escarrando no chão: “Claro que vou, pô! Essa política velha é do satanás, disse meu pastor, vou mudar tudo na cidade, pô!”. 

O Estado de S. Paulo, 24/04/2020