A entrevista de Fernando Henrique Cardoso, domingo passado, é a da clara palavra do estadista, além do presente imediato, para confrontar o segundo mandato de Lula. Reflete um misto de realismo político com um claro "mea culpa" dos caminhos do seu PSDB, após a derrota de outubro. A visão de fundo é a da nova conjuntura que se abre para o continente diante da globalização, propícia a uma expansão brasileira, muito ao contrário do começo do governo tucano, e do que enfrentava Lula em 2002. Mas esse futuro repete o modelo anterior, ou vai à condição de uma efetiva redistribuição de renda e de um desenvolvimento social sustentado?
O ex-presidente não vê outro caminho que o do tucanato. O contraste é só retórico. Não há como o petista sair dos trilhos, num trajeto em que o neocapitalismo inviabilizou, de fato, as condições de uma alternativa. Só caberia ao atual governo o paradoxo de realizar, tardiamente, a social-democracia tucana, diante da fatalidade das concentrações de capital e da hegemonia mais ou menos latente sobre as condições de nosso desenvolvimento nacional a prazo médio.
Lula herdaria esta mão única, no seu neoconservadorismo, na seqüência da estrita realpolitik do começo do governo e da ortodoxia de Palocci e Meirelles. Seria vão o neo clamor estatizante do presidente e FHC não poupou críticas ao PSDB, por não ter se defendido durante a campanha da acusação de "privataria", único rumo reconhecido pelos tucanos para a sobrevivência da economia brasileira.
Nessa mesma medida, o tucano não se deu conta da nova criatividade em que paga os seus dividendos o realismo de Lula. Aí estão as PPPs, as parcerias público-privadas, bem como uma nova concatenação entre os agentes da economia, rumo a um desenvolvimento social, que rompe com as lógicas estritas do mercado e suas paciências excessivas para a mudança. O bolsa-família não é programa estéril de mero assistencialismo, e garante, com melhoria de renda, o ganho do país marginalizado aos serviços de educação e saúde, e o mini-crédito se conjuga com uma nova lavoura e o mercado salarial, mesmo fora da velha carteira assinada.
A popularidade de Lula reflete o reconhecimento da primeira e grande melhoria de renda do país como um todo, que dá à nação de base o capital político único ao presidente. Tal para realizar uma social-democracia de fato, de que se apartou o tucanato, preso à dinâmica do status quo, e quase o primeiro governo Lula, no devoramento do partido pelo aparelho. O propósito brota da sensibilidade única do presidente, que sabe por onde não deve ir, de saída, e que tem que superar os sucessos meramente inerciais.
Nesse aspecto, fora das geometrias políticas, o governo Lula, nascido da intuição da nação de fora, é de esquerda, pela própria natureza redistributivista e interveniente no mercado. O que consagrou o segundo turno foi este impulso de base e hoje cada vez mais dissociado do país das elites, e seu exponencial de escândalos. Nesta mesma medida Lula não será, como diz FHC, "antidemocrático", ao prescindir dos partidos, quando agora o aumento do Congresso tornou obscena a separação entre o interesse do Legislativo e a grita emergente de toda a sociedade civil.
O segundo mandato vai persistir na convocação das forças políticas ainda que pouco precise do parlamento para as medidas em que continuará o êxito plantado pelo anticlímax inicial de 2002. Mas esta mobilização política não é a da velha União Nacional, que nos levaria sempre, noves fora, ao mesmo status quo. O ativo social saiu do perde e ganha da lógica do estrito mercado neoliberal. E a vitória de Lula não é a de ter convencido o povo da mudança independentemente de a fazer, como quer FHC. Mesmo porque é por esta certeza ganha que de fato começa a mudança. O país sabe, de vez, ao que não quer jamais voltar.
Jornal do Commercio (RJ) 29/12/2006