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Uma doença mundial

 

Não adianta se queixar ao bispo; ele está tentando livrar a própria pele. Ninguém mais está a salvo da violência, nem as instâncias abençoadas por Deus.

Dom Orani Tempesta sentado no meio-fio para se proteger do tiroteio entre policiais e traficantes em Santa Teresa, sexta-feira passada, mostra a que ponto chegamos no Rio. Não adianta se queixar ao bispo; ele está tentando livrar a própria pele. Ninguém mais está a salvo da violência, nem as instâncias abençoadas por Deus. Além desse incidente, o nosso cardeal já foi assaltado duas vezes em um ano. Em uma delas, com um revólver na cabeça, ficou sem o anel cardinalício e a cruz peitoral, duas insígnias episcopais. “A sociedade está doente”, ele diagnosticou, “tanto no aspecto ético, como no moral e na questão de segurança”. Dois dias depois, o massacre de Orlando, executando 49 pessoas e ferindo mais de 50 numa boate gay, daria razão para ele acrescentar que não só a “nossa sociedade”, mas também o mundo está doente. Como que para confirmar isso, os EUA voltaram a bater tristes recordes. Foi o maior atentado a tiros da história do país e o maior desde o 11 de setembro de 2001. Foi também a 16ª vez em sete anos que o presidente da República teve que fazer um pronunciamento à nação para deplorar atentados desse tipo.

Para o lobby da chamada “bancada da bala” na nossa Câmara dos Deputados, alimentada pela bilionária indústria de armas e munições, vale a advertência do presidente Barack Obama: “Isso mostra como é fácil que uma pessoa consiga uma arma e dispare dentro de uma escola, um restaurante, cinema ou boate”. Adeptos do bangue-bangue alegam que, se algum cidadão estivesse armado ali, teria evitado a chacina, matando antes o louco assassino. O certo, porém, é que se o atirador não dispusesse de tanta facilidade para comprar legalmente uma pistola e um fuzil AR-15, não teria causado tantas mortes (o AR-15 é a arma preferida dos traficantes cariocas e a que foi usada em 14 massacres ocorridos em território americano, sete dos quais no ano passado).

Talvez as investigações não consigam descobrir com absoluta exatidão a motivação do atirador — se fanatismo homofóbico, terrorismo doméstico, loucura solitária ou, o que é mais provável, um pouco de cada uma dessas patologias. O que se sabe com certeza é que a tragédia será usada na campanha eleitoral, com grande possibilidade de favorecer a candidatura de Donald Trump, que já está explorando o medo e a xenofobia. E não, claro, por solidariedade aos gays, aos quais têm tanta aversão quanto aos muçulmanos, mas para responsabilizar os democratas e sua candidata, Hillary Clinton, acusando-os de complacência com o “inimigo”. Suas primeiras declarações foram para defender restrições à imigração e não ao uso indiscriminado de armas.

Ainda bem que o Brasil não tem um arauto da intolerância como Trump (Será que não?).

O Globo, 15/06/2016