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Uma desnecessária usura do poder

 

Como o Governo Lula responde ao “a que veio”, em tempos e seqüências tão distintas das expectativas do Brasil estabelecido? O primeiro ano de mandato transformou os aliados eleitorais do PT em sócios efetivos de um programa de poder: deu a partida nas reformas ditas de base como índice de modernização institucional do País; diferenciou o caminho da mudança à margem dos purismos ideológicos e dobrou a sua facção radical; inaugurou uma política externa de novas alianças, por fora dos denominadores tradicionais das periferias e de seu petitório clássico.


Na aceleração da solidez dos seus ganhos faz mister atentar aos primeiros embates em que começa uma possível usura intrínseca do poder, a partir da suspeição da incidência de governo nas condições tradicionais de corrupção dos quadros dirigentes e de enfrentamento da deslegitimação do partido diferente.


O escândalo Waldomiro serve para destacar, de vez, o que são os riscos efetivos do Governo, e o que se lhe querem imputar, num enorme e rançoso déjà-vu, como se estivéssemos diante de mais um dos proverbiais abalos do mando, de um País montado sobre o velho regime e nem mesmo, por inteiro, exposto às expectativas da modernização. Deste horizonte que se define, pois, como a contrapartida do desenvolvimento, em razão de uma mudança estrutural das condições de vida social e econômica do País, expostas ao avanço da produtividade, à repartição da mobilidade social e ao melhor rateio da renda nacional.


São múltiplos os tópicos da cansativa descrição do que seja esta política. Do modo pelo qual, a ela podemos chegar, pelo salto vigoroso, como tivemos no período Kubitschek, quando nos aproveitamos de uma condição excepcional de ganho de recursos no nosso balanço externo de pagamentos. Aproveitando esta sincronia de avanços do regime - da sua funcionalidade crescente - acomodamo-nos à expectativa, passada de geração em geração, de que se modernizasse o País, por inteiro. É o que resultaria do jogo de uma melhoria de performance de seus subsistemas sociais, expressos - globalmente - no ganho de seu produto nacional bruto, pelo qual o País se acomodou ao incremento gradual da sua prosperidade, sem escapar à ameaça constante de retrocesso. Não chegamos à auto-indução da mudança, nem à crença de que as melhorias do produto tivessem, de fato, efeitos compensatórios na área social.


A corrupção é fenômeno crônico que se desprende do emperro das estruturas não funcionais, de um país que ainda tem um regime, mas não se assegurou decisivamente de um sistema. É marca tão inarredável, ainda, nesta transição, quanto à da baixa estrutural, também, da escolaridade universitária ou da incidência do analfabetismo, ou das taxas de desemprego no complexo da produção.


Torna-se inescapável, enquanto toda uma nova organização de poder, não logrou ainda a sua efetiva autonomia, como um complexo de mudança e desfuncionalidade renitente do aparelho de Governo se manifesta pelos excessos de parasitismos empregatícios, pela mantença das clientelas, pelas corretagens da obra pública e seus contratos. É todo um mesmo estigma que corta a ação do Executivo e a idéia da consolidação de uma nova ordem não excluiria a da permanência de todo este abuso, entendida, inclusive, como ancilar ao seu funcionamento, numa quase consensualização quanto à tolerância e expansão do abuso.


Da mesma forma, e na ciranda com que venham à tona as acusações de corrupção, no estuário múltiplo dessas muitas apropriações da coisa pública, criam uma síndrome de rejeição sumária de um governo atuante, julgado pelo fruir estabelecido e não pelo país de fora que agora foi ao poder e tem outra expectativa.


No quadro de Lula no Planalto, não há como vê-lo imune aos desvios embutidos, sua inércia, sua inevitável passagem de uma outra administração, criando cúmplices forçados e prisioneiros de uma usura de poder imemorial. Ou frente ao qual sucumbem às plataformas moralistas, como se pudessem erradicar pela vontade ilibada dos governantes os desvãos ou até as combinaziones ostensivas da máquina montada. O que enfrentam é uma cumulação destas inércias que acabam por criar uma responsabilidade objetiva imbricada em todo situacionismo político.


Não há chão novo e sólido para que se firme o procedimento da acareação destes abusos silenciosos, e os momentos de verdade, exigidos por este frente a frente, não vencem ao que dite a “força das coisas”. É processo político renitente, que só cede ao tempo interno de mudança e às pautas que abram eventualmente à demanda ética. Intransitivos, tanto o abuso no seio da máquina quanto a sua negação pelo corrupto, infinitamente substituíveis que são os roles, ajustados às pagas a maior das propinas e comissões, como diferenciais agregados numa transação silenciosa e funcionalíssima.


Waldomiro protagonizou um desempenho rotineiro, no acionamento destes subsídios, para o suporte da mecânica eleitoreira. Do seu abate em flagrante, no estado geral do sistema que herdou Lula só se esperará que não se negue que a vigília intensificada sobre todo o sistema evite as reincidências da tentação invencível. A visão do partido diferente como o PT se resguarda menos pela coibição de novos abusos que pelo equacionamento de fundo do problema, e na esperança de eliminar a corrupção, de si mesmo, pelo desenvolvimento político pelas reformas que já permitissem a presente etapa de modernização do País.


A resposta de base, com efeito, no âmbito do abuso eleitoral vai ao fundo partidário para as campanhas, aos controles das representações diferenciadas, às desconstituições dos mandatos como permite o instituto do recall, ensejando votações de confirmação ou repúdio ao desempenho do candidato em meio de mandato. O incidente Waldomiro não atinge o cerne do mandato de Lula, em sua específica diferença. Mas não pode desvia-lo, pela velha onda moralista, sua satisfação, sua retórica, do que é o espaço de cobrança do novo governo, nas reais demandas do outro Brasil.




Jornal do Commercio (RJ) 26/3/2004