Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Um valor mais alto

Um valor mais alto

 

A estarem corretas as pesquisas eleitorais, dificilmente Bolsonaro terá condições de virar o jogo no segundo turno, superando o ex-presidente Lula. Mas, se o tempo ruge no cangote do presidente, seus pequenos avanços em setores importantes, como no Sudeste e no Nordeste, na redução da rejeição, nos anunciam que ele vai solidificando sua posição de líder da direita no país, partindo de uma base de extrema direita que sempre o caracterizou.

Como constatado desde 2018, e confirmado no primeiro turno, com uma votação surpreendente para quem se guiou pelas pesquisas, Bolsonaro capturou o eleitorado que há anos votava no PSDB como alternativa do PT. O que restou da social-democracia dos tucanos ficou ao lado de Lula nesta eleição, e o centro, a direita, os liberais e os extremistas fecharam com Bolsonaro, não apenas no voto antipetista, mas também entre liberais que ainda alimentam esperanças de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, possa influir mais decisivamente num segundo mandato.

O combate à corrupção e o medo de um comunismo que não existe mais como quando da Guerra Fria têm seu papel nesse apoio a Bolsonaro, surpreendente diante do que ele fez durante seus quatro anos, e especialmente do que não fez. Não fez, por exemplo, o combate à corrupção que prometeu ao levar o ex-juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Ver Moro trabalhar como assessor do presidente durante o debate da Band no domingo, depois de ter rompido com seu governo devido justamente ao trabalho de Bolsonaro de impedir investigações de corrupção para proteger seus filhos e amigos, só tem uma explicação: seu objetivo desde sempre foi atingir o ex-presidente Lula, numa atuação motivada não apenas pelo combate à corrupção, mas também por uma tendência ideológica que perdoa os erros dos que lhe são semelhantes, mas não os de seus adversários.

Não é possível negar que houve um esquema de corrupção monumental durante o governo Lula, e aceitar que o então presidente não sabia o que acontecia é ter má-fé ou ser condescendente com os seus próximos ideologicamente. Mas nada justifica perdoar as ilegalidades de um presidente com quem trabalhou lado a lado e a quem classificou de ladrão. Se não tivesse se transformado num político vulgar, que logo, logo estará fechando acordos com outros que já acusou ou condenou, Moro poderia ser um senador independente, mas isso não o levaria ao Supremo Tribunal Federal (STF) ou a viabilizar uma candidatura à Presidência da República.

Dir-se-á que Moro continua obcecado por impedir que Lula volte à Presidência, o que justificaria seu apoio a Bolsonaro. Os fins justificam os meios. Nesse caso, porém, 'um valor mais alto se alevanta', uma questão maior a proteger, a democracia. Não ver que incorporar-se à maioria que Bolsonaro parece já ter no Congresso faz com que seja cúmplice de um possível golpe de Estado já em gestação não é ser ingênuo.

Mesmo com a aproximação do PT e de Lula de governos ditatoriais de esquerda, e de tendência de parcela ponderável do petismo para o autoritarismo e o controle do aparelho do Estado e da liberdade de expressão dos meios de comunicação, o perigo de Lula se tornar um ditador é menor que o de Bolsonaro, que poderá eventualmente vir a ter o apoio de parte das Forças Armadas e do Congresso.

Se Bolsonaro encontrou barreiras intransponíveis na opinião pública e nas instituições democráticas quando tentou criar o clima para golpes, Lula as terá em maior intensidade com um Congresso conservador/reacionário, a oposição inegociável das Forças Armadas e da opinião pública. Entre os dois 'menos ruins', há valores civilizatórios que não podem ser abandonados, a democracia o maior deles.

Todas as vezes em que os governos petistas tentaram ultrapassar as leis para controlar a máquina do Estado com objetivos autoritários, foram barrados em seus intentos e acataram as instituições. Espera-se que o ex-presidente Lula, se eleito, se empenhe em fazer um governo que supere os erros anteriores, ainda não devidamente purgados. Programas sociais e a favor do meio ambiente podem mudar imediatamente a imagem do Brasil no exterior. Quanto a Bolsonaro, sua surpreendente resiliência diante de um governo fracassado, e de uma postura anticivilizada cotidiana, indica que os piores instintos dos extremistas foram acordados por ele, que tenderá a continuar liderando esse eleitorado deixado órfão pelos tucanos.

Assim como PT e PSDB dividiram a governança do país por 20 anos, também o bolsonarismo persistirá como força política até que surja um novo grupamento de políticos sérios e responsáveis como aconteceu no PSDB originário, nascido em protesto contra o quercismo fisiológico do MDB.

"Nada justifica Moro perdoar as ilegalidades de um presidente com quem trabalhou lado a lado e a quem classificou de ladrão".

O Globo, 18/10/2022