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Um tiro que entrou na história

 

O carrasco percebeu que ele tinha um curativo e o arrancou, provocando o único gemido da vítima


ENTRE AS coisas inexplicáveis que aconteceram comigo, a mais estranha foi mesmo o tempo remoto em que transei com o mundo do balé.


Evidente que não foi na condição de bailarino ou coreógrafo. Mas, aí pelo final dos anos 50, acompanhava as excursões do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que ainda era capital da República. Evidente também que tanto eu como a grande maioria dos artistas daquela época estamos devidamente aposentados.


Numa dessas excursões, de- pois de uma semana com espetáculos no teatro Santa Isabel, de Re- cife, teríamos a próxima etapa em João Pessoa, na Paraíba. Ocupa- mos dois imensos ônibus e lá fomos nós, fiados e confiados nos motoristas locais. Deu zebra. Eles conseguiram cometer a extraordinária façanha de se perder nas estradas, e fomos parar numa cidade do interior paraibano.


A turma estava exausta, e o prefeito da cidade, aflito: teve de alojar todo mundo em escolas, casas, quartel da polícia e no único hospital da cidade. Até aí, tudo bem, culpa dos motoristas e do destino.


Falo bem em falar destino. Ele comete mais confusão do que qualquer motorista paraibano ou pernambucano.


Já estávamos instalados, es- perando pelo jantar que um abnegado coronel ficou de providenciar, quando o prefeito se lembrou da data: era 14 de julho, data nacio- nal francesa.


Comunicou-me a idéia: aproveitar o Corpo de Baile do Teatro Municipal, músicos, figurinos, cenários, e realizar um espetáculo no único cinema da urbe, que por sinal não era cinema, mas cine (não sei a diferença, mas deve haver alguma entre "cinema" e "cine").


Procurei jogar areia no projeto, mas o pessoal topou o espetáculo, e os alto-falantes da praça convocaram o povo. Um brinde especial do prefeito aos seus munícipes.


O cinema (aliás, o cine) ficou botando gente pelo ladrão. Alguns bailarinos improvisaram dois ou três números, inclusive uma versão de "A Valsa", de Ravel -único autor francês do modesto repertório que o pessoal detinha na ocasião.


Mas o grande momento não foi a valsa de Ravel nem os "fouettés" da moçada. O prefeito não abdicou do seu dever de pronunciar entusiasmado discurso saudando a República Francesa pelo memorável transcurso daquele 14 de julho.


Não me lembro da cara do sujeito, lembro apenas que era exaltado: falou muito em Robespierre e num juiz local -autoridade que lhe era adversa numa questão de verbas municipais.


Não prestei atenção na pichação do juiz, mas guardei a expressão de horror do alcaide paraibano ao descrever a morte do Grande Incorrupto. Não poupou detalhes: com sua peruca empoada, Robespierre subiu os degraus da guilhotina, impávido, compondo sua imagem definitiva para a história.


O carrasco percebeu que ele tinha um curativo na mandíbula e o arrancou brutalmente, provocando o único gemido da vítima.


Lembro o gesto do prefeito repetindo, com expressão de dor, o gesto do carrasco, tendo por base de operações o próprio pescoço. Nada contra o gesto em si, mas ele falou em "esparadrapo" e, depois do espetáculo, questionado se gostara do seu discurso, elogiei-o fartamente no geral, mas botei particular reserva naquele esparadrapo.


Não, não podia ser esparadrapo, devia ser uma bandagem qualquer, nunca o produto industrializado que hoje usamos para proteger nossas feridas e chagas. O prefeito, como todo menino bonzinho apanhado em delito, prometeu não fazer mais.


Não sei se ainda vive. Se vivo for, deve estar me amaldiçoando. Bem verdade que os jornais quando se referem ao episódio, também falam em esparadrapo no pescoço Robespierre. Deve ser erro de informação, meu ou dos outros.


Felizmente, há um consenso naquele episódio marginal da Revolução: no momento em que Robespierre foi preso, tentando não se sabe se um suicídio ou uma resistência pessoal, ele pegou em arma.


Um oficial da escolta, chamado Merda, antecipou-se e lhe deu o tiro que provocaria a polêmica do esparadrapo. O tiro de Merda não matou o tirano, feriu-lhe apenas a mandíbula: sua participação na história limitou-se a esse tiro e a esse fracasso.


De resto, só se sabe que Merda deixou descendentes pela vida afora. Há sempre um em disponibilidade, dando sopa em qualquer parte do mundo e da história.


Folha de S. Paulo (SP) 24/8/2007