No meu ofício de ler e analisar textos, há muitos anos deparei com um poeta; Cesar de Araujo, de quem não ouvi mais falar. Num pequeno volume seu, chamado "Eu (im) pessoal", dei com versos assim: "Eu / mito de mim: desmito-me // Nomeado por mim: demito-me. // Esfinjo-me-interrogo: enigmação. // Posta a questão: / decifro-me-devoro".
Outro poema - subordinado a subtítulos como "(Eu) lásticos e (Eu) cológicos", tem versos de ângulos originais, como estes: "Há dias em que as cadeiras sentam na gente / as águas se lavam com o nosso rosto / é a noite iluminando a luz. / Quem sabe a verdade / o inverso de tudo?
Escrevi sobre Cesar de Araujo e não soube se continuara a formar palavras em poesia. Agora, neste final de 2006 fui a um encontro literário em São Gonçalo, no outro lado da baía, e lá me encontrei com Eda Lúcia Damásio de Araujo, que me entregou um caderno com páginas digitalizadas contendo poemas de Cesar de Araujo que fora seu marido e deixara uma quantidade de versos inéditos.
O título do volume é "Um Sol maior que o Sol". Que estranha geração de poetas viemos tendo a partir dos anos 20 do século passado - com Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, João Cabral, Ledo Ivo, César Leal, Cecília Meireles, Marly de Oliveira, Astrid Cabral, Nauro Machado, Carlos Nejar, Afonso Romano de Sant' Ana, Gilberto Mendonça Telles e tantos outros como de Cesar de Araujo.
Desse volume inédito que recebi de sua viúva, cito o poema "Fenômeno imperceptível": "Quando cessar o movimento / os corpos cairão / em todas as direções". Leia-se também este: "O numerado": "Sei que sou um número, / que número sou, não sei./ Sei que sou um elo ao infinito./ Ou de retorno ao princípio./ Se tudo for redondo, volto./ Se tudo plano, vou. // De qualquer modo, sou."
O que se mostra com força, antes de tudo, na poesia de Cesar de Araujo é a emoção que ele insufla nos versos.
Substantivos e adjetivos normais se comportam, em seus poemas, como tendo a missão precisa de chegar ao leitor e às vezes, comover; outras, abalar. Bom exemplo disso é o seu poema de amor, "Na alcova, apaixonadamente": "Não suporto nenhum tipo de ditadura: / só a tua ditadura, amor. / Ai de mim! // Se tu queres, tudo dou / e nem sequer pedir eu posso. / Ai de mim! // Tu me esmagas, sufocas, oprimes, me devoras.// Eu te adoro e me apavoro. / Ai de mim! // Vou vivendo-morrendo assim. / De amor por ti e desamor por mim. / Ai de mim. // Deixar-te? / Jamais! Perder-te? Ai de mim!!// Tomba o corpo. Seca a alma. Tudo morto. // Ai de mim, amor, ai de mim!"
A boa surpresa deste final de 2006 é que esses poemas inéditos acabam de ser publicados: "Um Sol maior que o Sol" está sendo lançado em livro, o que vem recolocar seus bons poemas ao alcance de um público maior. Seu tom desabrido no juntar palavras para com elas chegar a uma posição original e clara no julgar o que fazemos leva-o a uma postura ética no analisar poeticamente os caminhos que escolhemos. É o que faz às vezes com três versos. Como estes: "Longe de mim/ os que não falham nunca: / Enchem-me de vergonha!".
Em Cesar de Araujo a palavra falada é importante, pois seus poemas são concebidos e realizados para a voz, suas palavras têm a novidade de uma tradição viva que se mantém - ou da parte viva e recuperável de uma tradição aparentemente desaparecida. Sua obra compõe um mapa literário do País, com uma poesia contida que, vinda de Drummond, se espraiou por gerações posteriores, não só no Brasil, mas também na América de língua espanhola.
A volta póstuma de Cesar de Araujo à poesia faz bem à literatura brasileira, que precisa de vozes como a sua, dando sentidos novos e vivificantes às palavras com que vivemos.
"Um Sol maior que o Sol", de Cesar de Araujo, é um lançamento da Editora Thesaurus, de Brasília. Editor: Victor Alegria. Organizadora: Eda Lucia Damásio de Araujo. Coordenação editorial de M. P. Haickel. Capa: óleo sobre tela de Silva Filho. Ilustrações de Miguel Coelho. Prefácio de Aníbal Bragança.
Tribuna da Imprensa (RJ) 19/12/2006