Não há motivo para pânico ainda, mas talvez para certa inquietação. Em muitas lojas, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais aqui de Berlim, estampa-se, em local visível, um peremptório aviso aos fregueses: não se aceitam, sob nenhum pretexto, notas de quinhentos euros. Nas lojas onde não postam o aviso, quem tenta usar uma nota dessas recebe um olhar suspeitíssimo, se sente um Al Capone e fica com medo de que chamem a polícia. A loja prefere receber de volta a mercadoria escolhida a sequer tocar na nota maldita, não adianta insistir. Nas grandes lojas, os caixas também fazem um ar de extrema desconfiança, mas, quando a venda vale a pena, pegam a nota como se ela estivesse contaminada por uma bactéria mortífera e a levam para um exame pericial. Já devem ter inventado uma máquina especializada nesse serviço, porque o exame leva pouco tempo e se declara um alívio geral, quase festivo, quando o funcionário volta depois da perícia, já segurando a nota com o carinho devido a quinhentos euros legítimos. Suspiros, sorrisos e manifestações quase festivas se seguem, uma verdadeira confraternização internacional.
Já tomei vários sustos, pois, como lhes disse uma vez, carrego o infortúnio de ter a cara errada em toda parte. Nos Estados Unidos, tenho cara de cucaracha e, em formulários que patenteiam a obsessão racial americana, sou classificado como “hispânico”, lembrete para que não fique me achando branco, porque lá branco é uma coisa e hispânico, mesmo se louro de olhos azuis, é uma das três “raças” mais comuns, distinta de African Americans e de brancos. Devo ser a cara de Evo Morales e suponho que dou sorte em não me acharem descendente de negros africanos, porque a barra para estes, como sabemos, costuma ser mais pesadinha do que para hispânicos. E, quando não sou hispânico, creio que minha cara é de árabe, o que certamente já foi responsável por episódios pouco gloriosos em minha movimentada existência, como no dia em que, no aeroporto de Chicago, decidiram que minha aparência se encaixava num tal perfil do terrorista que na época usavam e me fizeram um checape minucioso, antes de me liberarem com o que me pareceu alguma relutância. E também houve um dia, no aeroporto de Atlanta, em que me retiraram da fila que já estava à entrada daquele canudo pelo qual se faz o embarque no avião para me revistarem, com direito a ter o traseiro fuçado por um cachorro, que, por sinal, demorou um pouco para dar seu veredito, me deixando com temor de ser enviado imediatamente para a prisão de Obama, em Guantánamo.
Na França, também tenho cara de árabe e na Espanha, como nos Estados Unidos, tenho cara de hispânico, ou seja, imigrante de alguma ex-colônia espanhola, que não costuma (ou não costumava, antes de a crise econômica bater por lá, fazendo com que os trocados gastos pelos turistas da América do Sul abafem momentaneamente o antagonismo) ser recebido de braços abertos. Em Portugal, tenho cara e fala de brasileiro e os funcionários da Imigração não costumam responder ao bom-dia jovial com que manifesto meu contentamento em estar de volta à terrinha. Uma vez, tentando caracterizar-me como grande amigo do país, apontei para minha comenda portuguesa, orgulhosamente espetada na lapela, e me veio a impressão momentânea de que aquele esbirro de maus bofes ia pedir meu encarceramento e deportação como impostor. Na Alemanha, tenho cara de turco. E cara de nordestino no Brasil, o que, como se noticia de vez em quando, pode render-me até linchamento. É duro.
É duro, mas, mesmo com este meu aspecto de cúmplice da quadrilha responsável pela falsificação de notas de quinhentos euros, Berlim continua a ser uma das cidades mais fascinantes do mundo. Ao contrário dos estereótipos que, no Brasil, alimentamos sobre os alemães, a cidade é alegre e gentil, aberta e hospitaleira, tanto quanto uma grande cidade pode ser. Em uma mercearia da Kantstrasse, é possível até comprar farinha de Feira de Santana, ou todos os ingredientes para uma feijoada. Ou, se não se puder fazer a feijoada pessoalmente, achar um restaurante que a sirva. Não descarto nem mesmo uma moquequinha, ou um tabuleiro de baiana na Breitscheidplatz. Entre museus, exposições, concertos, performances especiais, livrarias, restaurantes de todos os tipos e categorias e uma pulsação que não cessa dia e noite, é difícil escolher e achar tempo para ver e experimentar tanta coisa.
De minha parte, não dispenso a visita de sempre ao Zoológico, que não ouso descrever, porque não me considero capaz. Na entrada, topei novamente com um grupo de crianças, percorrendo tudo na companhia de uma professora. Ir ao Zoológico, assim como a museus e correlatos, é considerado uma importante ação educativa. Um bom Jardim Zoológico faz parte da educação que todos devemos dar à juventude e me vi, mais uma vez, encantado com o que se apreende e compreende por lá, abrindo a cabeça para o muito deste mundo cujo conhecimento nos é necessário e indispensável. E aí observei, mais uma vez, como as coisas são relativas. Temos também zoológicos em grandes cidades brasileiras, mas o estado em que no geral são mantidos, com animais praticamente torturados e sujeitos a condições acabrunhantes, como acontece no Rio de Janeiro, não é educativo, antes muitíssimo pelo contrário. O que em Berlim educa, no Brasil deseduca. Não estou propondo que se gaste dinheiro com a reabilitação dos zoológicos brasileiros, temos outras prioridades. Mas sugiro que os eliminemos, enquanto forem chiqueiros infectos e cruéis, porque, do jeito em que estão, são muito danosos à educação dos jovens e do povo em geral. Já não gastamos o necessário com a educação. Então pelo menos paremos de gastar com a deseducação e a promoção da insensibilidade. Mas não aposto nem uma nota de quinhentos euros que isto venha a acontecer.
O Globo, 20/10/2013