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Um papa esquecido

 

Não estou muito a par, mas me parece que um importante aniversário foi esquecido. Mês passado, completaram-se 50 anos da morte de João 23. Deve ser calhorda comemorar mortes, mas é uma forma, razoavelmente decente, de outros homens lembrarem e cultuarem aqueles que realmente merecem. E poucos homens mereceram tanto quanto Angelo Roncalli, um camponês grosso e quase inculto que chegou ao Papado de surpresa e, de surpresa em surpresa, mudou não apenas o perfil da Igreja, mas influiu de tal forma em seu tempo que também mudou o século.

Hoje é lugar-comum: João 23 foi um dos cinco homens que realmente marcaram o século 20. Bem verdade que ao lado de Stalin e Hitler, mas também ao lado de Fleming, Martin Luther King e Churchill.

Sua participação no plano da grande história, aparentemente, foi apenas religiosa. Ele subiu no trono de São Pedro apenas para um mandato-tampão, já estava doente e avançado na idade. Mas em pouco tempo fez muito, "in brevis explevit tempora multa". Convocou um Concílio Ecumênico, ou seja, abriu o debate para uma instituição multissecular que há anos se adaptara ao desenho esboçado pelo "Syllabus" de Pio 9º. Essa convocação do Concílio Vaticano equivaleu à convocação dos Estados Gerais nos primórdios da Revolução Francesa.

Quando as crises internas, as dramáticas contradições da economia e da sociedade francesas chegaram a um ponto insustentável, não restou alternativa a Luís 16 senão ouvir os estados gerais, ou seja, a grande assembléia dos representantes da nobreza, clero e povo, que havia mais de 800 anos não era reunida nem ouvida. Daí em diante, foi impossível deter a marcha da revolução, que custaria, entre outras coisas, até mesmo o pescoço do próprio Luís 16.

Com João 23 ocorreu o mesmo. Ele quis questionar alguns pontos da Igreja Universal, na doutrina e nos costumes, abrindo a massa de milhões de católicos para o "aggiornamento" que se tornara inadiável. Acabou com a igreja triunfalista, ensinou novamente a humildade, a tolerância, o diálogo.

Por acaso, teve a seu lado, em pontos e posições diferentes, homens que em certo sentido remaram no mesmo sentido: J.F.Kennedy, na Casa Branca, e Nikita Kruschev no Kremlin.

Durante o pontificado de João 23 pareceu a muitos que, afinal, seria possível o encontro de Ocidente e Oriente, capitalismo e socialismo, fé e ateísmo. Uma "entente" que ao terminar, com a crise dos mísseis instalados em Cuba, botou a funcionar, com tudo a que tinha direito, a Guerra Fria, que durou anos.

Se um papa, na idade avançada de uma aventura humana, foi capaz de se perguntar se ele próprio estava certo, abrindo o coração e a mente à ideia e ao sentimento "dos outros", tudo poderia ser melhor no mundo. Esse foi o grande exemplo, a lição que o "contadino" grosso e feio deu a seu tempo. Transcendeu à religião: tornou-se político, humano, social e sentimental. Em todos esses planos ele encontrou espaço para ficar.

Bem verdade que a rotina da intolerância, o orgulho e os preconceitos do homem continuaram e continuam, cada vez mais azedos. Mas ele abriu uma porta, mostrou uma luz. Qualquer que fosse o destino do mundo, a partir dele, a humanidade ganhou a marca de sua mensagem. Ele tentou. Ele fez o que lhe cabia. E nesse fazer tudo que lhe competia, João 23 aumentou a responsabilidade de cada um na condução de nosso próprio destino.

Folha de S. Paulo, 26/7/2013