A área de comunicação do Planalto, a meio mandato, lança-se à tarefa de mobilização política visando a promoção da nossa auto-estima. Há que se perguntar, entretanto, se o enfoque da campanha vai ao fundo do sentimento do País dos excluídos que ganhou as eleições e se percebe em outra e emergente sintonia nacional. Existe, de fato, para esses setores uma baixa valorização do Pindorama? Ou se está apenas importando a perspectiva do Brasil de salão, gasto pelo eterno recomeço das mesmas promessas? Não há como transferir para o País transfigurado pelo sucesso eleitoral de 2002, esta visão tradicional, frente a uma tomada de consciência que começa com a organização do PT e que vai, degrau a degrau, nas sucessivas campanhas, forjando uma identidade fundadora. Foi a Palácio com Lula, e seu impacto continua ainda a exigir ampla análise.
A nação de fora continua a esperar pelo sucesso do regime numa verdadeira ascese da esperança, a contrastar com os açodamentos das nossas elites, pelo imediato das vantagens contra o real projeto de mudança. Não aproveita a onda fundadora do País de Lula o slogan e o monocórdio da frase redentora da nossa auto-suficiência de que "o melhor do Brasil é o brasileiro". Em idêntica regra de três um paraguaio poderia dizer o mesmo de seu povo, ou um panamenho, ou um habitante do Suriname. O mote da campanha é de Câmara Cascudo, nascido na melhor cultura integralista, quando o País continuava à busca de uma verdade nacional, ainda, na República do "café com leite" e da dependência agrícola e extrativista.
O ufanismo e o patrianovismo anteciparam esta estrutura compensatória dos manifestos de nosso orgulho coletivo, num refluxo defensivo máximo da história incipiente, barricada na argüição do nosso último fundamentalismo. Ou da afirmação intransitiva, para ninguém pôr defeito, ou discutir, afinal, do a que veio, na sua validade universal, o homo brasiliensis.
O Brasil da saga de Lula se pode contrapor a todo esse bom enxoval das grandezas, das retóricas à la Afonso Celso, Plínio Salgado ou Cascudo pela épica desta auto-organização de uma força trabalhadora, independente de toda condução e ingerência do velho sistema. Hoje o que deparamos é o brasileiro e sua tomada de consciência, já que, na sediça lição de Ortega, somos nós e nossa circunstância, inseparável, constitutiva, de um novo reconhecimento social fundador, feito da esperança e da disciplina do voto afinal ganhador. Tal como até agora proposta, a campanha do Planalto tem um teor regressivo se não melancólico, a furtar-se à percepção real deste momento brasileiro. Ele é prospectivo; tem pouco a ver com a estrita memória clássica, vai buscar heróis emergentes, de que não se dissocia, no sentimento popular, o avanço e a ratificação de um segundo mandato presidencial. Nestas condições, como se organizou o panteão, ou a escolha desses 100 brasileiros de todos os tempos, que retrate a confiança e o justo orgulho nacional, buscado entre o nosso passado canônico e esta identidade, que mal começa, para os antigos excluídos?
Sua primeira tônica será a de vê-lo num presente, salientar figuras vivas como fez adequadamente o enfoque dos desportistas, como a primeira projeção dos brasileiros, no espelho de um reconhecimento realmente coletivo pela ampla exposição mediática. A presença nacional, por exemplo, nas Olimpíadas, já tão distinta da dopagem orgiástica dos campeonatos mundiais de futebol, assenta esta personalização efetiva dos heróis, na apreciação do êxito ou da tragédia de cada atleta e a permitir, de logo, o seu cotejo internacional.
O panteão acertadamente acolhe os atletas, vivos em grande maioria, respondendo a uma esperança imediata sem estigmas, nem derrotismos crônicos. São identidades instantâneas, quase transcendentes, como a que acolhe, também vivo, em outro cenário, Oscar Niemeyer no preito à obra brasileira de maior reconhecimento mundial. Claro, reconheçam-se os pressupostos de cautela e de método em que, entre os "100 brasileiros", deva-se atentar à expressão de nosso multiculturalismo e da riqueza de nossas etnias.
O índio Marçal, o orador frente ao Papa, espantado em 1980 no Amazonas, pela força de sua luta pela justiça, e assassinado meses depois, avulta com toda procedência. Mas o afro-Brasil, fora dos critérios performáticos, que permite o futebol ou o prodígio musical, de Pelé a Pixinguinha, vai à retranca dos meados do século XIX. Concentra-se nos irmãos Rebouças, Antonio e André, engenheiros, cientistas e pioneiros do melhor empresariado, que apenas começava entre nós.
O panteão tem também nichos repetidos para propor o culto de nossa auto-estima e protagonistas, às vezes, mal encaixados na plataforma da glória para o Brasil de hoje. Qual a distinção entre "heróis nacionais" - como José Bonifácio ou Sobral Pinto - ou "personagens históricos", quais Juscelino, Getúlio e Dom Helder Câmara, que teria sido o primeiro Nobel brasileiro sem a intervenção coatora do Governo Militar?
É também equívoca a escolha da categoria de "pensadores" para juntar, numa só ribalta, legítimos cientistas sociais criadores, como Gilberto Freyre ou Oliveira Viana, ao lado de humanistas ligados à valorização do direito ou das liberdades ou ao avanço, entre nós, da educação. Na mesma pauta figura como único jurista reconhecido no País, Rui Barbosa, ao lado dos mestres, tanto da escola nova como da teoria da "tomada de consciência", pelos processos contemporâneos de alfabetização, de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, a Paulo Freire. Mas como abrigar nesta mesma plataforma, como "pensadora" a esplêndida poeta Cecília Meirelles?
É justificável que a escolha dificílima vacile entre valores afins. Mas não pode ser ré do esquecimento de alguns nomes, mutilando o podium de valores nacionais incontornáveis.
Não é admissível a falta de Lucio Costa entre os arquitetos, e de Alceu Amoroso Lima, o fundador da crítica brasileira e teórico-chave da nossa modernidade, ao lado de um Caio Prado ou de um Otavio Ianni. E se Pedro I está contemplado como herói do País, com maior razão entre os personagens da história se imporia a figura de D. Pedro II, a quem se associa a própria vigência de uma época fundadora da nacionalidade. O trabalho instigante do Planalto propõe oportunamente heróis anônimos, tanto o do menor marginal e incorrigível que afinal se recupera, ou da moça que persiste, determinada, e vindo da pobreza mais desmunida, em conseguir a sua pós-graduação na USP, vencendo, ao mesmo tempo, a ameaça da cegueira e de doença incurável.
O que nos mostra o trabalho é como já aposentamos a cultura ornamental, escapando aos arcanos fáceis de uma memória rarefeita e seduzida, pelos padrões externos ao nosso desempenho legitimamente coletivo. Dá-nos conta, afinal, de um Brasil que não se quer como o reflexo das velhas elites do País prosélito. Demos a partida, recortada, penosa mas nunca equivocada, de um ver o mundo em efetiva reflexão.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 07/01/2005