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Um obstinado e discreto gênio da literatura

 

Costuma-se dizer que o desinteresse relativo à vida de Machado de Assis (1839-1908) é simetricamente proporcional ao interesse gerado por sua obra: enquanto a produção literária de Machado não cessa de ser mais e mais valorizada, sua biografia estamparia apenas o morno transcurso de um exemplar funcionário público, de um esposo fiel e devotado à dona Carolina, de um ser algo distante das questões políticas, e, juntando-se as duas pontas da existência, de alguém que, vencendo barreiras da origem étnica e de uma frágil constituição física, alçou-se ao posto de nosso escritor máximo, tornando-se também o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.


A rigor não teria havido um Machado, mas ao menos dois, o “Machadinho” impetuoso dos primeiros tempos e o homem comedido de depois -assim como a crítica, e o próprio autor, também divisaram duas fases em sua criação literária. De modo esquemático, diríamos que, quanto mais a obra se afirma (segunda fase), mais o homem se retrai, ou retrai-se, paradoxalmente, para revelar-se melhor através dela, que é, no fim das contas, o espaço que interessa para o encontro entre escritor e leitor, para além das peripécias que eventualmente tenham, ou não, apimentado a vida do artista. A confissão pessoal, direta, não era o seu forte, daí a epistolografia machadiana ser considerada o ramo “menor” de seus escritos.


Discurso fluente e diretrizes bem delineadas


É relativamente vasta a bibliografia acerca do binômio “vida e obra” de Machado. Para ficarmos em apenas três títulos, citemos o pioneiro “Machado de Assis”, de Lúcia Miguel-Pereira (1936), a contribuição de Jean-Michel Massa em “A juventude de Machado de Assis” (1971) e os quatro volumes que compõem “Vida e obra de Machado de Assis” (1981), de R. Magalhães Jr. A esse rol se acrescenta agora “Machado de Assis - Um gênio brasileiro”, de Daniel Piza.


Trata-se de um estudo que, sem agregar muitas informações ao que já se conhecia sobre o autor, tem o mérito de sistematizá-las num discurso fluente e com diretrizes bem delineadas, entrelaçando de modo consistente os elementos sociais externos e seu reflexo, transfigurado, no texto machadiano. Abastecendo-se sobretudo no opulento, embora atomizado, manancial de dados registrado por R.Magalhães Jr., Piza opera um bom recorte seletivo no material já existente, a partir dele moldando uma narrativa mais orgânica, a par de um tom crítico-interpretativo de que se pode até divergir, mas que logra minimizar (apesar do título!) a aura hagiográfica que ronda os discursos biográfico-laudatórios tecidos em torno dos “grandes vultos da pátria”.


O “Machadinho” da primeira fase ocupa cinco dos 13 capítulos da obra. Após uma infância enevoada, que a cautela dos biógrafos preenche com reticenciosos “deve”, “talvez”, “é possível”, Joaquim Maria estreou na imprensa com um poema, em 1854. Até quase o fim da vida colaboraria em inúmeros jornais e revistas. No período que se estende até cerca de 1880, as intervenções do escritor foram, de fato, mais incisivas no que respeitava os grandes temas políticos e sociais do país -a escravatura, a Guerra do Paraguai, os embates entre liberais e conservadores.


Batalha pela afirmação como homem de letras


Já nessa denominada “primeira fase” fica patente que nada em Machado se fez por atropelo: parecia guiar-lhe uma obstinada, embora discreta, batalha pela sua própria afirmação como respeitável e polivalente homem de letras, aspiração que se materializou no exercício das mais diversas modalidades de escrita: a poesia, a crítica teatral e literária, a dramaturgia, a crônica, a ficção. Contrariamente às lendas que sublinhariam os aspectos dramáticos e árduos de tal caminhada, Piza revela que, mesmo sem alçar-se à unanimidade de que hoje parece desfrutar, Machado sempre foi contemplado por uma favorável recepção crítica -leia-se, a propósito, um recente e valioso estudo de Ubiratan Machado (“Machado de Assis -Roteiro da consagração”, 2003), que fornece ampla documentação sobre o assunto.


Na matéria propriamente literária de sua pesquisa, Piza dá relevo a importantes textos, algo esquecidos, da crônica machadiana, tal como o publicado na “Gazeta de Notícias” menos de uma semana após a abolição da escravatura. São bem fundamentadas as observações do biógrafo sobre o deslocamento de Machado simultaneamente frente às estéticas do romantismo e do naturalismo. Outras vezes, o discurso de Piza arrisca-se a estender-se além do necessário, sobretudo quando parafraseia, entremeado a alguns comentários, o enredo de romances já por demais conhecidos, como sucede nas nove páginas concedidas às “Memórias póstumas de Brás Cubas”.


O livro apresenta pertinente e variado material iconográfico, tanto do autor quanto da época. A bibliografia, vasta e atualizada, incorpora indistintamente tanto as boas edições machadianas quanto as menos indicadas -os volumes da W.M. Jackson Editores, por exemplo. Alguns poucos erros factuais, facilmente corrigíveis, não comprometem a qualidade do conjunto. Assim, “Dom Casmurro” ora surge como publicado em 1900 (p.24), ora é datado (corretamente) de 1899 (p.317). “O Teatro”, de 1863, é referido como primeiro livro de Machado, quando, já em 1861, viera a lume a peça “Desencantos”. Piza registra a ausência, entre os fundadores da ABL, da figura exponencial de Cruz e Sousa, o que é exato. Mas conviria acrescentar, para que não se pensasse tratar de uma discriminação particular contra o poeta, que todos os escritores simbolistas foram alijados da formação inicial da Academia, proscritos pelo então hegemônico e vitorioso grupo dos parnasianos.


Tempo próprio dos grandes criadores e criaturas


Num relato linearmente cronológico, talvez cause surpresa que Piza haja subvertido a temporalidade exatamente no primeiro capítulo do livro, ao apresentar não o nascimento, mas a morte de Machado. A inversão parece expressar uma homenagem prévia de Piza ao escritor das memórias póstumas de Brás, cuja autobiografia igualmente se iniciava com a descrição do falecimento de um narrador. A diferença é que, com Brás Cubas, estamos diante de um defunto-autor, falante, enquanto, com Piza, defrontamo-nos com um autor defunto, silente. Mas ambos, Machado e Brás Cubas, representam, afinal, uma vitória contra a morte ao serem, sem cessar, convocados à vida, por meio de um presente perpétuo de leituras que os revivem a cada dia, inexauríveis, num tempo para além do tempo, próprio dos grandes criadores e criaturas da arte literária.


Machado de Assis -Um gênio brasileiro, de Daniel Piza. Imprensa Oficial de São Paulo, 416 pgs. R$ 60




O Globo (Rio de Janeiro) 17/12/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 17/12/2005