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Um matrimônio antigo

 

Antes que a confusão aumentasse, o melhor era saber exatamente o que se deveria fazer


A IGREJA estava cheia: o órgão parara de tocar e o padre abrira a capa de asperges para facilitar o movimento das mãos. Colocou os óculos no meio do nariz, justamente onde o septo nasal fazia uma curva, e olhou para a assistência. Gente boa, da melhor sociedade de Vila Isabel e adjacências: os homens vestiam ternos de tropical azul-marinho e tinham um brilhante na gravata de seda; as mulheres apertavam-se em tafetás e, como numa espécie de código, traziam um bracelete de ouro nos pulsos. Era um uniforme. Depois de olhar a assistência, o padre olhou os noivos, apalermados diante dele, à espera dos acontecimentos. A experiência ensinara-lhe a não encarar os noivos, ele não era um desmancha-prazeres, sabia realizar uma cerimônia a preceito, sem constranger ninguém.


Soltou o pigarro para tentar clarear a voz -medida desnecessária, a voz jamais lhe sairia clara, a bronquite e o cigarro entupiam-lhe as fossas nasais, arrebentavam-lhe as cordas vocais, razões da rouquidão espasmódica que tornava os seus sermões incompreensíveis e os seus conselhos inúteis.


Mesmo assim, fez o que pôde: limpou a garganta e começou a ler o processo segundo o qual o fulano ali presente, pelo favor de Deus e da Santa Madre Igreja, desejava casar-se com a fulana ali presente.


Lia os proclamas com monotonia, engrolando palavras e frases. Bocejou ao virar uma das páginas do processo e foi então que a voz lhe saiu mais alto, devido à boca que se abrira demasiadamente:


- Se alguém sabe de algum fato que impeça esse matrimônio, sob pena de pecado mortal, deverá dizê-lo!


Habituara-se a fazer uma pausa simbólica neste momento, pausa muito curta, do tamanho de um parágrafo mental. Quando estava muito cansado, media a espera pelo tempo em que pensava esta frase: "Vão todos para o Diabo que os carregue!" O hábito e o tédio simplificaram a frase e reduziram a pausa -às vezes, mal tinha tempo para pensar: "Vão para o Diabo!"


Apesar das cautelas para impedir qualquer imprevisto, ou por causa do bocejo que o obrigara a elevar desnecessariamente a voz, ou por inconveniente distração, demorou-se um pouco e aproveitou a pausa para olhar, uma vez mais, a assistência. Caídos no meio do nariz, os óculos davam-lhe o aspecto aconchegante de um avô complacente, olhando a ninhada de netinhos.


De repente, os óculos pularam do meio para o topo do nariz: uma voz levantou-se da plebe e bradou:


-Eu sei!


Em 28 anos de sacerdócio, nunca lhe acontecera aquilo. A multidão, apertada nos tafetás e nos tropicais azul-marinho, não entendeu de imediato o que se passava. Os noivos, mais apalermados que antes, não tinham escutado direito e se julgaram obrigados, a bem da coreografia nupcial, a ficar mais duros do que já estavam. Haviam recebido instruções de uma parenta da noiva, perita em etiqueta, que lhes recomendou a posição fixa, "ainda que a igreja pegue fogo ou vire de cabeça para baixo, não olhem para trás!" Pois a igreja podia pegar fogo, virar de cabeça para baixo: eles permaneciam retos, fixos, diante do altar. O estado-maior de ambas as famílias, esse sim, mandou para o diabo os conselhos da etiqueta e da prudência. Reinou ali mais confusão que surpresa: todos julgaram que tinham ouvido mal, menos o padre, que, de frente para os fiéis, não somente ouvira perfeitamente, como via o braço levantado sobre as demais cabeças.Como não soubesse o que fazer, resolveu ganhar tempo e repetir a pergunta:


-Se alguém sabe de algum fato que possa impedir esse matrimônio, sob pena de pecado mortal, deverá dizê-lo!A voz, dessa vez, foi ouvida por todos. Não houve mais dúvidas: alguém sabia! Um senhor adiantou-se da multidão e repetiu com firmeza, embora a voz lhe fosse, de natural, esquálida e rachada:


-Eu sei!


Bom, antes que a confusão aumentasse de forma irreparável, o melhor que se fazia era saber exatamente o que se deveria fazer. O padre olhou para os noivos, que continuavam firmes, imperturbáveis e para os principais representantes das duas famílias, esses sim já completamente entregues ao estupor, ao desvario. De uma coisa apenas teve certeza: não poderia continuar a cerimônia. Ia dar bolo. Elevou a voz de forma enérgica:


-A cerimônia está suspensa! Não haverá casamento porra nenhuma!


Folha de São Paulo (SP) 8/12/20006