Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Um fundamentalismo sem profetas

Um fundamentalismo sem profetas

 

O que mais porta de espanto esse começo de 2006? A violência das reações às charges contra Maomé no jornal de Copenhague, fogos às embaixadas e pisoteio da bandeira vermelha e branca, a se somar ao ultraje de sempre do pendão americano? Ou o espanto do Ocidente com esta reação, pondo pela primeira vez em risco os nervos das melhores democracias, a viabilidade de coexistência com este Islão? A dúvida nasce do próprio país de Hamlet, horrorizado entre o impacto das caricaturas, e a defesa do mais enraizado dos direitos da dita civilização ocidental, ou seja, a livre expressão do pensamento e da liberdade de imprensa.

Confrangidos, os dinamarqueses lamentam a catástrofe mas não pedem desculpas. Até onde começa, vindo da cepa do mundo mais desenvolvido, o novo fundamentalismo de resistência e afirmação das liberdades? E mesmo ponha em risco a atual realpolitik de convivência como mundo rachado após a queda das torres? Na verdade, choca a bulha, a bem dessa mesma consciência, entre o acatamento do exercício à liberdade de crítica, e o respeito às religiões.


O direito de exprimir-se corre parelho ao de crença, no mesmo podium da mais solene das declarações das Nações Unidas. O abismo começa agora, no que se revela como um entranhado desprezo ocidental com a realidade do Islão e do quanto ele defronta todo o universo cultural sacralizado, amarrado à cúpula da liturgia com que o mais de bilhão de atuais habitantes do planeta prosternam-se quatro vezes por dia em direção à Meca. As caricaturas do Jylands Posten nasceram do mais trivial entendimento do que seja uma opinião pública secularizada.


Mas as charges não se deram conta de que não há leitura que passam a ultrajes em segredo, nos capilares do mundo mediático. Violência O devastador, dá-se conta hoje, da violência de um inconsciente social ferido que independe de Bin Ladens, ou de confrarias de horror na reação chegada à violência física, na incontrolável lufada da hora.


E a repetir-se, e agora dentro de que novo estopim? As praças mochas de Londres ou de Paris, na busca da conciliação islâmica, após o Jihad das ruas do Oriente Médio, mostra o quanto desculpas ou perdões, ou formas clássicas de descompressão não compõem mais esta ira desatada e, hoje, com o dedo no gatilho. Nem a Europa ocidental bem, no prezar as suas melhores liberdades, pode pôr-se à obra para conter o opróbrio desatado. O mundo mergulhado em terrorismo e contraterrorismo não sai, por si mesmo, da sua contradição sem apelar a terceiros atores, diante de seus protagonistas ostensivos. Sobretudo quando os conflitos já se multiplicam e os novos choques com Israel tomam a cena frente a devastação das torres e a maquinação de Bin Laden.


Ao neofanatismo do presidente do Irã, do nome impronunciável de todas as imprecações, múltipla as pontas de confrontação de seu país, esporeando a decantada "guerra das civilizações". A ela soma-se, ainda, o advento do Hamas no governo da Palestina, fazendo rebentar um velho tumor diante da conflagração do 11 de setembro. Bem haja, nesse quadro a iniciativa de Putin, tentando desvirar a tartaruga, e abrindo uma nova e possível interlocução diante dos protagonistas maiores de cá e de lá, imobilizado pelas declarações de Bush de não negociar com terroristas ou desocupar o Iraque e o Afeganistão, nem mesmo entregar a sua segurança às Nações Unidas.


Na ribalta nova Putin, entretanto, é só o primeiro a entrar em cena, diante desses Estados Unidos, que começam a se perfilar por detrás do Salão Oval e do basta a Bush. A insistência na radicalidade do Hamas perturba todas as expectativas de que, chegado ao poder, todo partido temperaria os seus propósitos pela realpolitik, própria dos vencedores.


Enfrentou a perda dos recursos americanos, mas as recuperou pela abertura dos cofres árabes, à frente o Emir do Quatar e o rei da Arábia Saudita. E a gravidade inédita do confronto chega à ameaça explicita de execução do novo primeiro-ministro palestino por Israel, caso se deflagre o ataque presumido às suas fronteiras.


Por outro lado, os próximos dias são críticos também, a saber-se se o Congresso americano mantém, ou não, o Patriot Act, do diktat da hegemonia, desfechada após a catástrofe de Manhattam. A nação-matriz da democracia volta ao grande horizonte para discutir o verdadeiro diálogo das civilizações e a derrubada do estado de exceção? Ou as charges criaram o último álibi para um conflito dos mundos de que nenhum profeta quer ter o vaticínio?


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 10/03/2006

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 10/03/2006