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Um chope e dois pastel

 

Nas três operações da mente definidas pela lógica de Aristóteles, a simples apreensão é comum a todos os animais, inclusive e obviamente ao homem. Vem, depois, o juízo, ou seja, a faculdade de emitir submete a apreensão ao juízo e daí resulta o raciocínio, que deu ao homem a faculdade, tornada necessidade, de se expressar. Fruto da apreensão, do juízo e do raciocínio, o homem logo desenvolveu a articulação verbal para denominar a apreensão, desenvolver o juízo e expressar o raciocínio.


Estava criada a linguagem.


É evidente que, após a Torre de Babel, não há uniformidade de uma língua em relação a outra nem dentro de si própria. As manifestações da fala, determinadas pelas intenções de cada homem, acabam por provocar uma diversidade de incidentes individualizados de cada linguagem. Os que falam, mesmo dentro de uma comunidade, empregam elementos circunstanciais e pessoais, mas, como a finalidade da linguagem é a comunicação, foram criados os limites finalmente aceitos por uma espécie de consenso social.


Estava criada a Norma.


Apesar dela, quem fala só expressa ou modifica um acontecimento se, à sua volta, outras pessoas aderirem à sua linguagem. Surge, então, o povo, autor da linguagem, não necessariamente, mas comumente, em oposição à Norma.


Há, portanto, variantes dentro de uma mesma língua, que, a partir de realizações individuais, se tornam realizações coletivas. Além de um acontecimento social, a língua é uma convenção arbitrária, determinada e aprovada por circunstâncias também arbitrárias. Para dar um exemplo próximo, a língua falada no Brasil pela população não-escolarizada ou escolarizada deficientemente cria particularidades que se diferenciam umas das outras e todas da Norma.


Cada uma delas possui seu saber e seu sabor, sua lógica interna. Esses traços são inerentes a todas as línguas e em todas podemos destacar duas variantes principais: a culta e a coloquial.


A primeira, que se convencionou chamar de "Norma", é elaborada, histórica, tem enunciados coerentes e maior riqueza de vocabulário; a segunda é variante da oralidade, da informalidade, do cotidiano, da necessidade imediata e quase inconsciente de se nomear um sentimento ou situação. Daí que a linguagem oral lentamente altera a Norma, mas a recíproca não é verdadeira. Percebemos isso quando a gramática passa a admitir o que antes considerava erro.


São diversos os motivos que levam ao desvio da Norma. Um deles é a tendência ao menor esforço, que observamos nas construções "tu vai", "ele vai", "nós vai". Se usamos o pronome pessoal, por que precisamos inserir no verbo a desinência número-pessoal? Tanta lógica existe nesse uso do povo que o inglês adotou como norma culta "I go", "we go", "they go".


Fenômeno semelhante ocorre quando se constrói o plural no português popular. O signo lingüístico remete-se à essência do objeto concreto, definido em si mesmo como, por exemplo, um "pastel". Todos sabemos o que é pastel e usamos a palavra pastel para designar nada mais nada menos do que o pastel. No entanto, a marca do plural -no português, o "s"- não está no objeto, tampouco em sua essência de pastel, mas apenas na palavra. Ao usar um numeral para exprimir quantidade, não seria necessário colocar o "s" e as desinências prescritas pela Norma. Seria uma redundância. Daí a freqüência com que se ouve nos bares "um chope e dois pastel". Um milhão de coisas concretas, limitadas pelo que se conhece e apreende como "pastel", não modifica cada pastel em si, tornando-o uma coisa que só existirá como palavra, mas não uma realidade física nova, diferente da anterior. Por que então falar "pastéis", que designa um objeto inexistente para o qual se criou um conjunto de sílabas que deforma a realidade, a essência do objeto preexistente, que é o pastel?


Não apenas a lógica e o bom senso mas o menor esforço, mais do que a ignorância ou aversão à Norma, são responsáveis pela maior parte das mudanças e adaptações. Daí que está sendo criada a linguagem dos internautas, que chega a extremos do uso exclusivo de consoantes, como "blz" para expressar "beleza", "bj" para "beijo" ou "tb" para "também". Aqui, também existe coerência subliminar, uma vez que as consoantes já são portadoras de vogal em sua pronúncia e há línguas que não são vocálicas. No limite, a tendência pode retroceder aos ideogramas de algumas das línguas orientais.


Anteriores ao "internetês", há linguagens especializadas para determinados grupos, como o "economês" e outras, que funcionam como signos de uma cabala setorial em expansão.


Mesmo nesses casos, o da apropriação de uma linguagem cabalística, quase conspiratória, para o exercício de uma atividade profissional ou recreativa, descobrimos o povo, em sua acepção mais larga, como autor da linguagem. Não se concluirá daí que, criando o coloquial, a fala do dia-a-dia, o povo agride a Norma por prazer ou revolta. Inconscientemente, ele sabe que, mais cedo ou mais tarde, a Norma lhe dará razão e mérito.


 




Folha de São Paulo (São Paulo) 20/05/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 20/05/2005