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Um carnaval que alerta e ensina

 

Cada povo tem seu jeito de inventar sua cultura, a maneira com que se expressa seu subconsciente, a ginástica que faz para representar um momento ou uma necessidade específica de seu conjunto de ideias.

No Brasil, o carnaval tem um papel fundamental nisso tudo. Sendo a mais importante data festiva no país, ele é também algo que está definitivamente ligado à sua vida social. Para o mundo todo o Brasil é “o país do carnaval”, e isso funciona um pouco como um passaporte para nossas manifestações de qualquer espécie.

Nada mais natural, portanto, que a cultura apareça também por meio dos festejos e dos mitos carnavalescos. Às vezes na própria articulação entre as duas coisas: os festejos e os mitos.

Isso só aparentemente simplifica a definição da verdadeira cultura brasileira. Pelo contrário, como o carnaval é intrinsecamente uma festa de caráter alternativo, como ele não se define como festa religiosa ou de qualquer outra natureza mais precisa, sua verdadeira natureza é sempre posta em discussão.

Não há conceito que defina com precisão o que é o carnaval. Em geral, os especialistas ficam perdidos em suas avaliações, sem uma conclusão que permita o enquadramento dele como uma das festas (ou o que seja) conhecidas e datadas pela Humanidade.

O carnaval não está inscrito em nenhuma tradição de qualquer origem, conhecemos apenas alguns sinais que podem nos ajudar a compreendê-lo, procurando características que desejamos preservar em nossas análises. Ou, quem sabe, até desenvolver.

Assim, quando dizemos que o carnaval tem papel fundamental na invenção de nossa cultura, em cada uma de suas manifestações de um jeito especial (revolucionário ou não), estamos também dizendo que seus atributos mais visíveis fazem parte da estrutura de sua prática e de suas consequências.

Aqui no Brasil, cada vez que se anuncia o carnaval daquele ano, sempre surgem as canções que serão as mais interpretadas pelos foliões, as que indicam o que somos ou o que devemos ser, um comportamento desejado e talvez necessário, conforme o estágio em que se encontra nossa sociedade.

Na virada da década de 1950 para 60, podia-se ouvir uma voz que cantava uma marchinha carnavalesca: “Ela é fã da Emilinha, não sai do Cesar de Alencar/ Grita o nome do cantor (grita) Cauby! Cauby!/ E parece se esquentar/ Pega a Revista do Rádio e começa a se abanar”. E a voz concluía: “Enquanto isso na minha rua, ninguém arruma uma empregada (gritos) Marlene é a maior!”.

Claro que a voz reclamava que, com o entusiasmo desenvolvimentista provocado pelo recente governo Kubitschek, ninguém mais queria ser apenas uma empregadinha — as moças agora queriam ter o mesmo privilégio que tinham suas semelhantes nos países industrializados, na Europa e nos Estados Unidos.

Esse alerta funcionou até recentemente, quando se percebeu que o Brasil seguia sendo o pobre país de sempre, onde as moças necessitadas tinham que topar os empregos que surgissem. O anúncio de “dias melhores”, como foi declarado por nossa presidente da Academia de Cinema na festa de premiação deste ano, servia somente para a política com o advento da nova democracia nacional, graças ao fim do governo Bolsonaro. Mas a economia, graças ao mesmo governo, tinha até piorado.

Os “avisos” por meio do carnaval não são mais levados a sério. Aliás, a rigor, nem existem mais. Mas, quando são compostos e cantados pela população, têm sempre esse mesmo viés de uma manifestação cultural sempre que não é possível anunciar a verdade.

O carnaval também serve para nos contar o que está acontecendo no Brasil, quando não temos notícia oficial a nosso alcance.

O Globo, 03/09/2023