Desta vez, a culpa não é nossa, é do próprio Criador, que, não tendo nada o que fazer, nos criou à sua imagem e semelhança e, de quebra, sem necessidade aparente, criou uma tal árvore do bem e do mal para dividir os bons dos maus, os certos dos errados. Resumindo: eu (que pertenço ao mal) e os outros, que formam o bem, no qual não acredito por ignorância ou cálculo.
O referendo do último domingo foi uma etapa da luta que atravessa séculos -e nunca foi tão fácil saber onde estavam o bem e o mal. Independentemente do resultado (qualquer um daria no mesmo), foi salutar que as coisas permanecessem separadas, cada macaco no seu respectivo galho: os bons, como sempre, com os eflúvios do bem; os maus com a peçonha do mal. Pleonasmo moral e previsível.
Em tempos menos conturbados, é difícil pra burro distinguir os bons dos maus. Eles se misturam ou se revezam sem maiores danos para a marcha da humanidade rumo ao seu destino que até hoje não está muito bem definido -se é que existe um destino para ela.
Em tempos tumultuados como o nosso, as coisas ficam mais claras. Em "Mãe Coragem", Bertolt Brecht diz que nada como uma guerra para arrumar as coisas e as consciências. Estoca-se o trigo, defendem-se as nascentes de água, as crianças e os anciãos, arruma-se o restante na vanguarda e na retaguarda e -tal como na lutas de boxe- que vença o melhor. Verdade que o "melhor" é sempre questionável. Mas a lei é esta: há sempre um vencedor, e o vencedor, por direito de conquista, se não é fica sendo o melhor.
O referendo do último domingo, embora com propósitos pacíficos, transformou-se numa guerra de opiniões sobre o seis e a meia dúzia. Os dois lados tiveram razões que a própria razão conhece, ou seja, sem razão alguma.
De olhos fechados, sabe-se quem está de que lado. E, como todos desta vez estão certos, tudo continua como sempre.
Folha de São Paulo (São Paulo) 25/10/2005