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Trump e trumpismo

 

Acho que aconteceu com todos os que, como eu, não conseguimos acompanhar o resultado ao vivo. O pesadelo veio não enquanto dormíamos, mas ao acordar perguntando, sem acreditar: como perdeu, se todas as pesquisas e projeções davam a vitória para ela? Como não ganhou, se ficou à frente do adversário com mais de 200 mil votos populares? Democracia não é a voz do povo? Ainda sonolento, achei que a primeira providência, imagina, deveria ser avisar os EUA que existe um sistema eleitoral mais simples e eficaz. O Brasil fez essa experiência de colégio eleitoral, eleição indireta, e não deu certo. Eleição direta é muito melhor: ganha quem tem a maioria dos votos dos eleitores. Aqui, Hillary estaria eleita presidente. Ou presidenta. 

Afastado o sono, veio a constatação de que o mal não seria Trump em si, que pode ser qualquer coisa, inclusive o contrário do que se mostrou na campanha, pois nunca se sabe quando está falando a verdade, se é que alguma vez fala. Em quem acreditar — no candidato que considerava Obama o pior presidente de todos os tempos ou em quem agora quer se aconselhar com ele? O mal é o que ele encarnou, conquistando por meio de um discurso racista, xenófobo, misógino, de ódio étnico, cerca de 60 milhões de trumpistas presentes em várias camadas e regiões do país. É uma enorme porção retrógrada, reacionária, que assusta e faz pensar em Nelson Rodrigues advertindo há meio século: “Os idiotas vão dominar o mundo, não pela qualidade mas pela quantidade”. Mas não só de “ideologia” foi feita essa conquista. Houve também fisiologia. Aos brancos do interior de pouca instrução e baixa renda, por exemplo, que foram fundamentais para sua eleição, ele acenou com uma “América grandiosa de novo”, que ofereceria melhores condições de vida. 

Não se deve tirar o mérito de Trump dizendo que, se não fosse ele, seria qualquer outro no seu lugar. Acho que não. Ele desempenhou o seu papel com grande competência, sabia o que estava fazendo e, para quem falava, não era uma piada. Levando para a campanha as técnicas de sedução que desenvolvera no show bizz, ele fascinou até a imprensa, tornando-se personagem divertido, histriônico, folclórico, indispensável. Ela tratou-o como um desbocado inconsequente, sem perceber que o estava ajudando a transformar a realidade política num reality show, com um público cativo como o que ele dominava no seu programa de sucesso na televisão. Ele se vendeu como uma marca de sucesso.

Em suma, Trump só é presidente da República da “maior democracia do mundo” porque existe o trumpismo. E este deve ser levado mais a sério do que seu efeito pitoresco, até porque há fenômenos parecidos em outras partes do mundo.

O Globo, 12/11/2016