Nem só de confete e serpentina é feito o Carnaval. Para quem quer aproveitar o primeiro feriado prolongado do ano, mas não está nem um pouco interessado em enfrentar multidões, calor, barulho e ambientes geralmente embalados a muita bebida alcoólica e pouca moderação, o melhor mesmo é se manter bem longe da folia.
Folha Equilíbrio, 9 de fevereiro de 2006
Longe da folia: este era o lema de dona Francelina. Ela era dessas pessoas que detestam Carnaval, por causa da zoeira, da confusão e, claro, da imoralidade. Muito religiosa, dona Francelina desaprovava o relaxamento de costumes que acompanha o chamado tríduo momesco, uma época de vício e de pecado. Se pudesse, sairia da cidade, iria para a serra, para um spa, ou mesmo para a pacata cidadezinha do interior em que nascera. Mas não podia, por uma simples razão: ela e o marido, Ernesto, eram muito pobres. Ele, auxiliar de escritório, ela, costureira, mal ganhavam para se sustentar, e isso que não tinham filhos. O jeito, portanto, era ficar na capital e agüentar o barulho, que não era pouco.
Diferente da esposa, seu Ernesto era um carnavalesco nato. Desde criança participara em bailes infantis, sempre fantasiado; adorava desfiles, gostava de sambar. Mas não podia fazê-lo, claro, por causa da mulher. Ela jamais o admitiria. De modo que seu Ernesto carregou esta frustração por muitos anos. Até que a própria Francelina, por assim dizer, resolveu o problema.
Ela se queixava de que não podia dormir nas noites de Carnaval, por causa do barulho, e assim começou a tomar soporíferos. Caía num sono profundo, tão profundo que o marido tinha de sacudi-la por muito tempo até que acordasse. E isso lhe deu uma idéia: começou a aproveitar a oportunidade para sair de mansinho e ir a um salão não muito distante, onde caía no samba. Quando voltava para casa, tomava todas as precauções para que a esposa de nada desconfiasse: banhava-se, botava o pijama, deitava-se, fingia-se profundamente adormecido.
Isso poderia ter durado muito tempo, não fosse o fato de Ernesto enxergar mal. E como enxergava mal, não viu dois confetes em sua camisa. Mas dona Francelina, que tinha boa visão, viu os tais confetes e perguntou a respeito. O marido explicou que aquilo nada tinha a ver com bailes, que uns garotos lhe tinham jogado confetes na rua quando voltava para casa.
Não se sabe se dona Francelina acreditou ou não. O fato é que Ernesto está disposto a ir a um baile de Carnaval -mas realizado em um salão onde não se use confetes. Que, como se sabe, têm uma natural vocação para a traição.
Folha de São Paulo (São Paulo) 27/2/2006