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Trabalhar com Hélio

 

Durante 30 anos, de 1989 a 2019, tive o privilégio de me sentar, todos os anos, diante de Hélio de Almeida em sua casa-estúdio nas Perdizes e ver meus livros, até então em forma de palavras, saltarem de sua prancheta e se transformarem em layouts —os embriões dos objetos que iriam para as livrarias. Hélio foi o diretor de arte de pelo menos 30 deles, quase todos na Companhia das Letras. E, quando eu me aventurava por outros selos editoriais, punha como condição que eles saíssem de seus lápis e pincéis. Condição aceita de saída —quem não queria ter Hélio em seu catálogo?

Hélio morreu no dia 20 último, aos 80 anos. Um infarto em um segundo, sem aviso prévio e em silêncio. Uma morte gentil, tão compatível com ele, uma das pessoas mais gentis que se poderia ter como amigo. Descobri isso em 1979 em minha breve passagem pela IstoÉ, que ele paginava de capa a capa, dedicando a cada página um capricho que eu nunca vira em alguém do ramo. Reencontramo-nos dez anos depois, na Companhia das Letras, para pormos em pé meu primeiro livro, "Chega de Saudade".

Hélio tinha algo que o distinguia de muitos colegas: lia os livros com que iria trabalhar e gostava de dividir a criação com os autores. Era aberto a sugestões, às quais acrescentava toques de que só ele seria capaz.

Certa vez, ao criarmos um livro intitulado "Tempestade de Ritmos", sobre jazz e música popular, propus-lhe como capa a foto de uma prateleira de vinis, com as lombadas rigorosamente alinhadas na vertical. Hélio observou bem a foto na tela do computador. De repente, inclinou-a em 25 graus, dando às lombadas uma aparência de chuva intensa. Claro ---o livro não se chamava "Tempestade de Ritmos"?

Hélio, se quisesse, poderia ter sido pintor, escultor ou o que quisesse nas artes plásticas. Mas preferiu o infinito de recursos das artes gráficas. Seu talento não lhe permitiria fazer por menos.

Folha de São Paulo, 03/08/2024