Hoje vou transcrever textos alheios. Não por preguiça ou falta de assunto, mas porque creio serem uma interessante amostra do que vai em muitas cabeças, sobre o escandaloso terror que acossa a cidade do Rio de Janeiro. Escrevi parte do que penso no domingo retrasado. Mas o debate é bem mais variegado. Vejam duas opiniões em cujos textos não meti nem uma vírgula, nem corrigi o que imagino serem descuidos de revisão. A primeira talvez vários de vocês já conheçam, pois circula na internet faz um tempinho, mas não lhe consegui confirmar a autoria, daí não a mencionar, para não correr o risco de endossar uma atribuição falsa. E a segunda me foi enviada por um leitor que prefere não ter a identidade divulgada, porque só quer dizer o que pensa, mas não quer polemizar. Veio encimada por uma citação da governadora, que teria observado que “O usuário financia o tráfico e o estado é que paga o pato.” Seguem elas grifadas, aí embaixo.
“É irônico que a classe artística e a categoria dos jornalistas estejam agora na, por assim dizer, vanguarda da atual campanha contra a violência enfrentada pelo Rio de Janeiro. Essa postura é produto do absoluto cinismo de muitas das pessoas e instituições que vemos participando de atos, fazendo declarações e defendendo o fim do poder paralelo dos chefões do tráfico de drogas. Quando a cocaína começou a se infiltrar de fato no Rio de Janeiro, lá pelo fim da década de 70, entrou pela porta da frente. Pela classe média, pelas festinhas de embalo da Zona Sul, pelas danceterias, pelos barzinhos Ipanema e Leblon. Invadiu e se instalou nas redações de jornais e nas emissoras de TV, sob o silêncio comprometedor de suas chefias e diretorias. Quanto mais glamuroso o ambiente, quanto mais supostamente intelectualizado o grupo, mais você podia encontrar gente cheirando carreiras e carreiras do pó branco. Em uma espúria relação de cumplicidade, imprensa e classe artística (que tanto se orgulham de serem, ambas, formadoras de opinião) de fato contribuíram enormemente para que o consumo das drogas, em especial da cocaína, se disseminasse no seio da sociedade carioca - e brasileira, por extensão. Achavam o máximo; era, como se costumava dizer, um barato. Festa sem cocaína era festa careta. As pessoas curtiam a comodidade proporcionada pelos fornecedores: entregavam a droga em casa, sem a necessidade de inconvenientes viagens ao decaído mundo dos morros, vizinhos aos edifícios ricos do asfalto. Nem é preciso detalhar como essa simples relação econômica de mercado terminou. Onde há demanda, deve haver a necessária oferta. E assim, com tanta gente endinheirada disposta a cheirar ou injetar sua dose diária de cocaína, os pés-de-chinelo das favelas viraram barões das drogas. Há farta literatura mostrando como as conexões dos meliantes rastacuera, que só fumavam um baseado aqui e acolá, se tornaram senhores de um império, tomaram de assalto a mais linda cidade do país e agora cortam cabeças de quem ousa lhes cruzar o caminho e as exibem em bandejas, certos da impunidade. Qualquer mentecapto sabe que não pode persistir um sistema jurídico em que é proibida e reprimida a produção e venda da droga, porém seu consumo é, digamos assim, tolerado. São doentes os que consomem. Não sabem o que fazem. Não têm controle sobre seus atos. Destroem famílias, arrasam lares, destroçam futuros. Que a mídia, os artistas e os intelectuais que tanto se drogaram nas três últimas décadas venham a público assumir: “Eu ajudei a destruir o Rio de Janeiro.” Façam um adesivo e preguem no vidro de seus Audis, BMWs e Mercedes.”
E aqui vai a outra:
“Se, por um milagre, todos os consumidores de drogas do Rio de Janeiro decidissem parar de comprar e consumir drogas - e assim financiar o tráfico, o Rio de Janeiro se transformaria numa Suíça? Não, a comparação com a Suíça não serve, porque lá os índices de criminalidade são baixíssimos, embora lá haja muito consumo - e naturalmente tráfico - de drogas. Ou talvez num imenso Portugal, onde o consumo é tolerado e os dependentes tratados, onde os números de assassinatos, assaltos, estupros, seqüestros e outros crimes violentos contra o cidadão são ínfimos diante dos nossos. A sociedade aceita que de vez em quando um ou outro dependente de heroína ou de cocaína (ou de álcool) morra de overdose (ou cirrose), por sua livre vontade e total responsabilidade. O Estado paga o funeral. E economiza uma fortuna em repressão inútil e em prisões superlotadas. Nesses países a corrupção policial e judicial é mínima. Se, por civismo, solidariedade ou fé, acabasse totalmente o consumo de drogas no Rio de Janeiro, imediatamente uma parte dos traficantes cariocas se mudaria para São Paulo ou Minas Gerais. Mas a grande maioria dos ‘soldados’, ‘aviões’, ‘olheiros’ e ‘gerentes’ de bocas, por absoluta falta de opções, ficaria mesmo onde sempre esteve, nos morros, nas periferias, na Baixada. As legiões que o tráfico emprega certamente não encontrariam emprego nas fábricas, nas lojas ou nos escritórios, até para gente honesta e competente, está dificil. Continuariam onde sempre estiveram, zoando, fumando, cheirando, matando, estuprando, barbarizando. Continuariam drogados e violentos, só que também estariam desempregados. E desceriam sobre a cidade indefesa. Se os traficantes não vendessem mais drogas provavelmente não venderiam doces, venderiam armas, roubariam cargas, assaltariam lojas e residências, seqüestrariam pessoas, corromperiam policiais, juízes e políticos, oprimiriam, intimidariam, violentariam e matariam. Centenas de policiais e juízes e políticos corruptos deixariam de receber mesadas do tráfico e buscariam imediatas reposições salariais com assaltantes, contrabandistas, assassinos e seqüestradores. Sim, no ponto de descontrole em que a situação chegou, a conclusão lógica - e absurda ! - é que sem o tráfico, que é relativamente organizado e tem razoável controle sobre suas tropas, seria muito pior. A desordem absoluta, o caos urbano e a pilhagem, os bárbaros rompendo os portões, se é que ainda há portões. Quem pagaria o pato não seria o Estado, mas os cidadãos, que pagam quase metade de tudo que ganham com seu trabalho para sustentá-lo.”
Pois é, assuntozinho simples. Como dizia aquele Homem do Sapato Branco na TV, os senhores tirem suas próprias conclusões. Meu medo é que, quaisquer que sejam elas, tudo acabe indo, se já não foi, para a Cucuia de qualquer jeito.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 09/05/2004