A estação de caça ao trabalho de graça ainda não se abriu este ano. Quer dizer, já começa a mostrar a cara, mas só deve pegar mesmo, como tudo mais (com a exceção possível do governo, que não abriu há uns quinze meses e, um dia destes, quando menos se esperar, fecha - vita volat ), depois da Semana Santa. Não tenho razões para crer que vão dar o refresco pelo qual sempre rezo no réveil lon . Os sinais parecem indicar que a barra pesará e preciso providenciar uma guaribada no meu acervo de desculpas.
Desculpas, não. Explicações. Claro que são explicações honestas sobre como não posso fazer o que me pedem e às vezes me exigem, como se eu fosse uma espécie de funcionário público encarregado de assuntos lítero-editoriais. A Academia ajuda um pouco essa percepção, porque muita gente pensa que ela é uma organização estatal e os acadêmicos ficam lá o tempo todo tomando chá, recitando poemas franceses arcaicos e recebendo jetons de deixar qualquer um milionário com uns dois anos de imortalidade, tudo com dinheiro do contribuinte. Todo mundo é livre para pensar o que quiser da Academia, mas uma coisa básica precisa ser sempre recordada: ela é uma entidade privada e, do rico dinheirinho dos impostos e taxas, nem um centavo vai para lá.
Mas receio que este lembrete não sirva para nada, a julgar pelo volume de correspondência que continuo a receber, com a solicitação de que examine originais, elogie-os, prefacie-os e publique-os. Às vezes começa a baixar um e-mail que não acaba mais e eu já adivinho o que vem por lá. Originais. Volta e meia, apenas com um recado curto e grosso: “Para sua apreciação e posterior encaminhamento.” Também usam o fax e não esqueço o poeta que gastou todo o rolo de papel e assim mesmo não acabou de enviar seus versos do dia.
Terminei me vendo forçado a não ler nenhum original e, claro, com isso faço desafetos. Agora metido a besta, dei sorte na vida, certamente me vali de padrinhos e pistolões e acabei com trânsito fácil na vida de escritor. No bem-bom da vida airada, levando dinheiro do povo para tomar chá, dizer besteiras polissilábicas e me vestir de almirante do Império em solenidades, ignoro e esnobo os que apenas procuram uma oportunidade de mostrar seu talento. A verdade não convence de jeito nenhum, mas não posso deixar de repeti-la. Se eu fosse ler todos os originais que me mandam, não faria outra coisa na vida e, mesmo assim, não daria conta. Como, então, preterir muitos para favorecer alguns, que critérios usaria? Em segundo lugar, tenho um pudor imenso em dar palpite sobre o trabalho alheio. Certo, sou do ramo, mas não sou crítico, não domino o aparato teórico necessário e morro de medo de que, com uma opinião desastrada, possa fazer um estrago difícil de reparar. Terceiro, não sei, não sei mesmo, fazer prefácios. Falta-me, digamos, a embocadura necessária, o cacoete, como dizem comentaristas de futebol. Uma simples orelha de livro já me deixa enrolado, quanto mais um prefácio ou introdução. E, finalmente, como encaminhar originais para publicação? Se fosse assim tão mole, não haveria a profissão de agente literário, para a qual tampouco tenho vocação. E a relação entre os escritores e seus editores não costuma ser como os que estão fora dela imaginam. Há, digamos, certos usos e costumes que não se violam. O escritor não gosta que o editor se meta no seu trabalho e, em contrapartida, o editor não aprecia que o escritor interfira no seu. Um acha que escreve bem, o outro acha que publica bem - e palpites, geralmente, não são bem-vindos. Receio que, se se tornasse freqüente eu aparecer nas editoras carregando originais, acabaria intoxicado de cafezinho nas salas de espera e recebido com menos entusiasmo do que um búfalo de mau hálito.
E o artiguinho para depois de amanhã, uma bobagem de mais ou menos trinta linhas? De graça, apesar de a organização que faz a encomenda ser rica, mas é que não tenho mais onde socar o dinheiro que vive sendo trazido aqui para casa em tonéis, como acontece com qualquer escritor na minha situação, que nem acha mais graça em acender charutos com notas de cem euros e mandar buscar um avião com mulé-dama americana de alto coturno saindo pelo ladrão, para passar o fim de semana em minha ilha de Angra. O pagamento, quando há, é simbólico, apesar de meus colegas e eu, faz muito tempo, virmos assinalando o inacreditável fato de que supermercados, lojas, senhorios e credores de modo geral não aceitam símbolos. E, para terminar, escrever qualquer coisa não dá trabalho nenhum, “isso você tira de letra”.
Nunca tirei nada de letra, nem mesmo jogando futebol, onde meu lugar no time era garantido bem mais pela grossura de zagueiro botocudo do que propriamente pelas qualidades técnicas. Se encaro um negócio desses, passo o tempo todo vagando pela casa, procurando palavras, raciocínios e observações num aterrorizante deserto mental. E, horror dos horrores, noto, pelas primeiras escaramuças do ano, que uma tendência que já se vinha anunciando está pegando força: fazer trabalhos escolares. A professora passa um trabalho para os alunos, eles me mandam as perguntas, eu levo dias batucando no teclado para responder às que entendo, eles levam minhas respostas de volta. Trabalho danado, esse, a educação brasileira sempre inovando. Algumas tarefas são menores, só envolvem uma perguntinha ou outra, mas quase todas vêm com o aviso de que a nota depende de mim. Quer dizer, vou acabar recomeçando tudo do segundo grau outra vez. E ainda vou me arriscar a receber reclamações ou processos de pais revoltados porque eu não fiz meus trabalhos de classe direito e seus filhos foram reprovados. Acho que vou pedir dinheiro ao governo, sim, pensando bem. Até porque essa matéria de grana ele tira de letra.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 21/03/2004