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Testemunho ocular da história

 

Para que viver muito valha a pena, alguma serventia deve ter, como, por exemplo, dar testemunho de fatos ou de pessoas que ficaram desconhecidos ou esquecidos.

Vou citar um exemplo: estava eu vendo o noticiário na televisão quando apareceu uma manifestação de protesto em Caracas, na Venezuela. O pessoal protestava contra mais um abuso do presidente Nicolás Maduro, mostrando cartazes. Num deles se lia: "El pueblo unido jamás será vencido".

Sorri contente, não apenas porque protestavam contra Maduro como também porque usavam um slogan que nasceu no Brasil –mais precisamente na Cinelândia, onde o povo se concentrara para a famosa passeata dos cem mil.

Eu, militante da luta contra a ditadura, estava ali com meus companheiros do Grupo Opinião, que tiveram papel decisivo na organização daquela manifestação.

Já então nos opúnhamos à posição dos radicais que, também presentes no comício, gritavam: "Só o povo armado derruba a ditadura".

Foi então que algumas vozes se levantaram dizendo: "O povo unido jamais será vencido". Esse slogan foi tomando conta da multidão e abafou a palavra de ordem dos radicais.

A história mostrou que nós, os moderados, que apostávamos na união do povo, tínhamos razão. A luta armada foi dizimada facilmente pela repressão militar, enquanto a união popular pela democracia derrotou o regime autoritário.

E, também por isso, vi que o nosso slogan vitorioso é agora adotado pelo povo venezuelano.

Mas não só por ele. Um pouco antes, vi a mesma frase num cartaz de protesto em Paris: "Le peuple uni jamais sera vaincu".

Claro que é mais fácil acreditar que o povo armado mudará a situação social. Mera ilusão. Certamente é mais difícil uni-lo e mobilizá-lo contra os poderosos, mas, no final, ainda que demore, é isso o que vencerá a batalha.

E por falar na luta contra a ditadura militar e no Grupo Opinião, que em novembro de 1964, oito meses depois do golpe, ajudei a criar, vou lhes contar outra história, de que fiz parte. Diz respeito à expressão "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come", que é hoje muita usada ou integralmente ou abreviada.

Sabem vocês, por acaso, de onde surgiu essa expressão? Duvido muito, mas, graças à idade que tenho, posso lhes contar.

A história é a seguinte: o Grupo Opinião –que antes do golpe era o Centro Popular de Cultura da UNE, mais conhecido como CPC– nasceu com o show "Opinião", a primeira manifestação de protesto contra o regime militar.

Como já tínhamos aprendido, enquanto militantes do CPC, que o radicalismo não conduz a nada, apresentamos um show contra o golpe, mas engraçado, alegre e bonito.

Basta dizer que os três intérpretes do musical eram Zé Kéti, João do Vale e a graciosa Nara Leão. Durante meses, o teatro lotava por antecipação e, por isso mesmo, os milicos não nos perturbaram.

A classe teatral se animou e outros espetáculos foram feitos na mesma linha, até que o nosso saudoso Abujamra decidiu montar "O Berço do Herói", de Dias Gomes.

Irreverente como sempre, exagerou na crítica aos militares e o espetáculo foi proibido. Foi a primeira censura, que desencadeou a ação dos milicos contra o teatro, proibindo peças ou fazendo tantos cortes que tornavam inviável o espetáculo.

Enquanto isso, o show "Opinião" chegava ao fim de sua carreira e devíamos montar outro espetáculo. Foi então que Vianinha, nosso companheiro, fez a seguinte proposta: "Vamos escrever uma peça que a censura não tenha coragem de proibir. Uma obra-prima de dramaturgia". O grupo todo participou da criação da história e o texto foi escrito por ele e por mim.

A peça era tão requintada que foi escrita em versos decassílabos. Concluída, a apresentamos à censura e os censores a aplaudiram de pé. Mas, antes disso, pronto o texto, faltava o nome da peça.

Paulo Pontes, também membro do grupo, nascido na Paraíba, lembrou que, na sua terra, havia um ditado que se ajustava ao conteúdo do espetáculo: "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come".

A sugestão foi aceita por unanimidade. O espetáculo tornou-se um sucesso de crítica e de público, ganhou todos os prêmios daquele ano de 1966. E o ditado paraibano, que lhe serviu de título, tornou-se nacional. 

Folha de São Paulo, 17/05/2015