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A tênue fronteira

 

No começo da minha trajetória como médico, vi muitas pessoas morrerem. Houve um óbito que me impressionou particularmente; ocorreu com uma mulher que estava em insuficiência renal avançada, já agônica. Eu permanecia ali, junto ao leito, observando-a - já não havia mais nada a fazer - quando, de repente, ela empalideceu, soltou um fundo suspiro, e pronto, no instante seguinte, estava imóvel, morta. Naquela fração de segundo tinha atravessado a sempre tênue fronteira que separa a vida da morte. Já não estava entre nós.


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Não preciso dizer que fiquei arrasado. Em parte. por causa do inevitável fracasso que espera a medicina nesta e em outras situações; médicos conseguem postergar o óbito, e têm feito isso com dedicação e com competência (basta ver como aumentou a expectativa de vida), mas, ao fim e ao cabo, a morte leva a melhor. E a pergunta é: como lidamos com isso? A religião tem respostas categóricas: a morte é unicamente um rito de passagem; dá início à verdadeira e definitiva existência, no Céu, junto a Deus, ou no Inferno, onde os pecadores são transformados em churrasco eterno pelos demônios. Uma concepção que irrita muitas pessoas, sobretudo os intelectuais, e sobretudo os intelectuais de esquerda: semana passada lemos aqui em ZH uma entrevista de José Saramago protestanto contra a ideia da religião e da divindade. É Saramago um pecador, um homem diabólico? Não, não é. Conheço-o há muitos anos e posso garantir que existem poucos escritores tão gentis, tão generosos como ele. Mas Saramago é teimoso, é cabeça dura, um comunista da velha cepa, que, contra a religião, continua desfraldando as antigas bandeiras ideológicas. Em alguma coisa a gente precisa se agarrar.


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E de alguma maneira a gente precisa neutralizar a antevisão da morte. Observem que o Dia dos Finados é precedido pelo Dia de Todos os Santos. Ou seja: não apenas a um, mas a todos os santos, recorremos na véspera da data que para nós será penosa. Já os mexicanos preferem a celebração e o humor: eles têm a festa das “Calaveras”, na qual os esqueletos são as figuras principais, quer como desenhos, quer como disfarce. “O mexicano”, dizia o grande escritor Octavio Paz, “brinca com a morte.” A ideia de encarar a morte como uma encenação explica também por que a gente pode ver filmes em que atores morrem aos montes: sabemos que aquilo não é verdade, que depois da filmagem cada uma daquelas pessoas foi para casa, convenientemente paga.


Alguém dirá: mas isto é assobiar no escuro, é negar o inevitável. Verdade. E aí a pergunta emerge: o que podemos dizer a nós mesmos para afastar o espectro que teimosamente nos persegue? Numa entrevista dada ao jornalista americano George S. Viereck, disse Sigmund Freud: “Vivi mais de 70 anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas: a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?”.


Estava Freud mentindo a si próprio? Estava desempenhando o papel que o mundo (ao menos o mundo psicanalítico) esperava dele, o papel de supremo guru? Pode ser. Não sabemos o que terá ele pensado, ou sentido, no momento do derradeiro suspiro, da palidez final. O que podemos fazer é falar ou escrever, é transformar nossa ansiedade em palavras.


As linhas acima são um exemplo disso.


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Agradeço as belas mensagens de Guilherme A. Fraga, Hedi Luft, Telmo Kiguel, Simone L. Berti, Luiz Antonio Alves, Gilmar José Taufer, Rodrigo Rosa, Antonio A. P. Donato, Claudia Mayer. Maria Helena Rodrigues, Ney Machado, João Moreira, Cláudio Ost, Maria Morales H. Dias, Renato Lampert, Ronaldo Sindermann.


Zero hora (RS), 1/11/2009