É com palavras que se fazem poemas. Com palavras e com letras, sons, riscos, traços, mas também com o silêncio. Há um silêncio que segura versos, cesuras, ritmos, tornando-os mais significativos. Sob esse aspecto, a boa prosa e a boa poesia se ligam intimamente quando buscam pelo ser.
Um livro de pura poesia, como "Para não dizer adeus", de Lya Luft, sugere posições e análises. A poesia exige muito de cada palavra que se lhe entregue. Por não compreender que é toda uma revitalização vocabular e todo um consumir de vida que entram na feitura de um poema que muitos poetas chegam a um muro intransponível em seus caminhos. Contudo, como dizia Jorge de Lima, "mesmo sem nós a poesia continua".
Dona de uma prosa instigante, vejo na poesia de Lya Luft uma força nova, com versos que vão além da simples leitura e conseguem, com palavras normais, ligadas a uma realidade quase dia-a-dia, alcançar uma nitidez realista de certo modo tranqüila, embora sacudida de turbações, inclusive vocabulares.
Seus versos têm a medida justa e, ao mesmo tempo, natural: detêm-se onde devem deter-se, encompridam-se ou não de acordo com a respiração de quem os faz, juntando o indispensável significado interno de cada palavra com a harmonia do cântico ("poesia é a linguagem que canta", disse Paul Eluard). Veja-se como, no poema "O rio do tempo", a música se desenvolve com naturalidade e decisão, como quem dissesse; "O que é, é." Primeiro, com dois versos; "O tempo não existe, nem dentro nem fora." Depois, terminando:
"O tempo não existe. Sou apenas
o aqui e o presente, e o atrás disso,
como um rio que corre mas não passa
- pois ele é sempre, em mim, agora."
Um dos lados importantes da poesia de Lya Luft é que ela se fixa num "ato de percepção" (no "aisthetá" grego que veio dar na estética de Baumgarten que significa simplesmente "ato de percepção"). Seus poemas vivem de palavras, que a cercam, mas sua busca pelo ser precisa também de afastamento, como nestes versos: "Renuncio às palavras / e às explicações./ Ando pelos contornos,/ onde todos os significados/ são sutis, são mortais." Mas como o tempo urge e ruge, não se pode permitir que ele fuja, e Lya Luft pede:
"Se me quiseres amar,/ terá de ser agora: depois/ estarei cansada./ Minha vida foi feita de parceria com a morte:/ pertenço um pouco a cada uma,/para mim sobrou quase nada". Mesmo sabendo que as palavras riem dos poetas, ao colocá-las num poema é como se as domasse transitoriamente: está no seu poema "Limites": "Abro a gaveta, e salta uma palavra: / dança sedutora sobre o meu cansaço, / veste-se de indefinições, vagueia / no labirinto das ambigüidades. / Acha graça de mim, que espero à frente / encontrar a solução dos meu enigmas. / Tento uma geometria que a contenha / no espaço entre dois silêncios quaisquer, / mas ela decide meus passos; peso de fruta / no sono da semente, assiste à minha luta / quando a desejo aprisionar, e às vezes até finge / que sou eu a senhora, a domadora, a fonte, / As palavras riem dos poetas, pois são livres; / nós, mediação incompetente."
Na poesia de Lya Luft, as vogais são claras e influem poderosamente na composição dos versos, e na cadência geral de cada poema. Essa pressão vocálica dá uma estranha velocidade à junção das sílabas, e contribui para que o "tempo" do poema apareça como solitário, música livre de limites. Esse "tempo" criado pelo poeta infunde nas palavras uma série de emoções que são a base do poema como tal, isto é, como não-prosa.
Na maioria de seus poemas conseguiu Lya Luft abster-se de usar consoantes fortes ou grupos consonantais (com "br", "gr", "dr") - só os utilizando em pouquíssimos trechos - o que dá uma permanente clareza a seus versos. Leia-se este "Segundo poema da cega":
"Homens são passos, e mulheres vozes
que se aproximam, param e se esquivam
sem criar raízes nesta treva.
Beijam-se às vezes como num murmúrio
e eu aperto meus lábios solitários
para depois, num mundo só de beijos,
pousar as mãos sobre meus olhos mortos
para que baixe nesses desamados
algum carinho, o medo."
A poesia de Lya Luft leva-nos à compreensão de que as palavras continuam no seu pensamento afã de vencer o desconhecido, para o qual, diz Lya, "estamos sempre de partida, até o momento de sermos deuses".
Depois da publicação de seus livros "Perdas e ganhos", em 2003, e "Pensar é transgredir" e o livro das jovens "Histórias da bruxa boa", no ano passado, aparece agora este volume de poemas, "Para não dizer adeus", todos editados pela Record. Projeto de capa: Ecelyn Grumach. Ilustração de Lena Bergstein e preparação de Tatiana Podlubny.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 07/06/2005