O jesuíta Teilhard de Chardin foi precursor do que foi chamado de evolucionismo cristão
DURANTE MUITO tempo, seus livros não puderam ser editados: ele era o jesuíta proibido. Depois de sua morte, em 1955, tornou-se um dos nomes mais discutidos de nossa época. Os setores mais conservadores da igreja acusam-no de heresia, mistificação e até de charlatanice. Outros o consideram um gênio e um santo.
Sete de novembro de 1926. O padre Teilhard de Chardin, então com 45 anos de idade, interrompe os seus trabalhos de paleontólogo em Tientsin, na China, e escreve à sua prima Margueritte Chambom: "Estou decidido a relatar o mais simplesmente possível a experiência ascética e mística que vivo e ensino há algum tempo. Não pretendo abandonar o rigor do cristianismo. Mas quero ir adiante".
Naquela carta estava, em embrião, a grande incógnita de sua personalidade. Aquele "ir adiante" era filosófico demais para um místico e místico demais para um filósofo. No fundo, o padre Teilhard era um paleontólogo. A mistura de tudo isso -o paleontólogo, o filósofo e o místico- criaria a feição definitiva de Marie-Joseph Pierre de Teilhard de Chardin, descendente de nobres, "o jesuíta proibido" que muitos consideram um santo, outros o Marx da teologia e alguns um simples charlatão. Naturalista por instinto e vocação, Teilhard demonstrou desde a infância uma profunda inclinação pela observação do mundo que estava fora dele, e não dentro. Curiosamente, essa inclinação levou-o à vida religiosa: em 1899, fazia o seu noviciado na Companhia de Jesus, em Aix-en-Provence. Logo depois, quando ensinava química e física num colégio jesuíta do Cairo, tomou sua mais firme e dramática decisão: as ciências naturais não seriam um "hobby", mas a sua própria razão de vida.
Nascido em 1881, ordenou-se padre em 1911. Foi padioleiro durante a guerra, em 1914. Beirando os 30 anos, Teilhard aproveitou a guerra como uma pausa em suas pesquisas, mas nesse período lançaria os fundamentos de seu sistema, que seria ao mesmo tempo existencial e especulativo. Parodoxal que fosse essa decisão, pelo menos era inoportuna para um padioleiro na retaguarda das linhas francesas.
Ele conhecia por antecipação os riscos que correria nessa tentativa de dar corpo à sua doutrina. Tinha dois sérios entraves pela frente: o primeiro seria resvalar para o embuste e a mistificação em que tantos se afundaram ao procurarem concretizar essa mesma síntese. O segundo seria a suspeição e a censura da própria igreja, zelosa em preservar um dos principais alicerces de sua estrutura doutrinária e moral: a fé, que para ela é mais do que um dogma, mas uma virtude teologal.
O jesuíta escrevia a um amigo, em 15 de março de 1916: "Enquanto não progredir e me organizar num Absoluto, serei apenas um tímido e um fraco entre os homens, embora saiba que a alternativa que me resta seja penosa: para a minha religião, serei considerado um trânsfuga".
Tomada essa decisão, Teilhard de Chardin dela não se afastaria, embora soubesse que em seu caminho se erguia o primeiro e mais traiçoeiro obstáculo daquela aventura filosófica e religiosa: ele teria de aceitar a doutrina evolucionista. E "ir adiante" apesar de e contra tudo. Essa doutrina, polêmica até hoje, fazia parte da bagagem cultural do Ocidente desde meados do século 18, embora fosse tenazmente combatida pela Igreja Católica que a catalogou entre a heresia (religiosa) e a estupidez (científica).
Foi neste quadro que Teilhard de Chardin decidiu aderir ao evolucionismo, num desafio brutal a uma tradição conformista de seus colegas religiosos. É famosa a habilidade dos jesuítas em se livrar de problemas semelhantes: Teilhard recebeu ordem de embarcar para Tientsin, na China, onde a Companhia de Jesus acabava de abrir um instituto de estudos superiores. Era mais do que um exílio. Em Tientsin, a voz de Teilhard não teria ressonância nos meios culturais e científicos.
Foi um erro tático da Companhia de Jesus. Ela ignorava que na China, naquela ocasião, realizavam-se diversas escavações e expedições paleontológicas. Sem querer, os jesuítas tinham posto o homem certo no tempo e nos lugares certos. Embarcando em Marselha em 1923, Teilhard de Chardin permaneceria na China até 1946, com raras viagens ao Ocidente. Teilhard não se afastou dos estudos e pesquisas. Aprofundou-se cada vez mais na ciência, sabendo que, através dela, poderia criar um novo sistema teológico. Em sua mente, começaram a tomar forma os principais conceitos que mais tarde seriam catalogados como o evolucionismo cristão. E muito mais do que isso.
Folha de São Paulo (São Paulo) 16/06/2006