Há quem ache que os Estados Unidos entraram no modo oposição de votar nos últimos anos. O revezamento entre democratas e republicanos tem acontecido mais rapidamente, com dois incumbentes sendo derrotados a cada quatro anos: Trump em 2020 e Biden agora. Há quem ache que a alta abstenção no mínimo atrapalhou o resultado das pesquisas eleitorais e pode ter atrapalhado principalmente a candidata Kamala Harris.
Foi uma vitória avassaladora de Donald Trump, que agora está com todas as facas e queijos na mão. O Partido Republicano levou Câmara e Senado, e Trump ainda tem a Suprema Corte conservadora a seu lado, sequela de sua administração anterior, que já promoveu um retrocesso histórico na questão do aborto.
Um presidente como ele, com todo apoio do aparato político americano, é novidade. Teremos de entender passo a passo no que esse arranjo dará. Trump já disse ser favorável a que a Ucrânia aceite perder territórios invadidos pela Rússia para acabar com a guerra e dá apoio incondicional a Israel. Sua relação com a Otan não é das melhores e, se confirmar o que já disse repetidas vezes, os Estados Unidos não investirão tanto na defesa do Atlântico e da Europa.
Todas essas mudanças geopolíticas mexerão com o mundo. Do nosso lado, serão poucas as mudanças diretas, até porque a América Latina não é exatamente prioridade dos Estados Unidos, seja o presidente democrata ou republicano. Mas as consequências indiretas podem nos afetar, como aumento das taxas para produtos importados ou da inflação americana a médio prazo. Na América do Sul, Trump tem um apoiador convicto, o presidente da Argentina, Javier Milei, e um companheiro de ideologia, o ex-presidente Bolsonaro, cujo filho Eduardo estava em Mar-a-Lago na festa da vitória.
O apoio declarado de Lula a Kamala foi um erro político e diplomático, a ponto de piorar uma relação que já seria ruim. Não é nada gravíssimo, no entanto. Trump não romperá com o país por causa disso. Não creio também que haja o perigo de o governo dos Estados Unidos tentar interferir para facilitar uma anistia a Bolsonaro, a ponto de deixá-lo elegível para 2026. Mas os contatos políticos do grupo de Bolsonaro com alas direitistas do Congresso americano podem levar a movimentos isolados que, mesmo sem ter consequências práticas, podem criar constrangimentos. Como a sugestão de proibir a entrada de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) nos Estados Unidos ou tentativas de impor sanções ao governo brasileiro. Nada disso, porém, terá o condão de fazer com que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mude sua decisão sobre a inelegibilidade de Bolsonaro ou com que o STF altere sua tendência sobre as ações golpistas dos bolsonaristas.
A vitória de Trump faz com que a esquerda, e mesmo os sociais-democratas, repensem suas posições, que estão desconectadas do mundo com novas reivindicações da sociedade. A esquerda virou uma posição elitista, vista por grande parte dos cidadãos, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos, como instrumento de opressão social da elite. Quando Lula se elegeu a primeira vez e criou o Bolsa Família, o Brasil era um. Hoje, os eleitores já não procuram o “pai dos pobres”, mas aquele que mostrará o caminho da redenção social, que pode levá-los a um mundo onde terão oportunidade de melhorar de vida. Pode ser um coach como Pablo Marçal, pode ser um milionário populista como Trump, pode ser um capitão sem papas na língua que se veste com camisa de clube de futebol.
Nos Estados Unidos, a dicotomia ficou evidente: Kamala Harris, filha de imigrantes que veio da pobreza para subir na vida, foi a candidata das elites das grandes cidades americanas, enquanto Trump, um milionário estrepitoso e verborrágico, vendeu esperanças fazendo com que a maioria dos eleitores tenha saudades de um mundo que não apenas não viveram, mas que sonham venha a se repetir. Difícil dar certo.