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À sombra das pirâmides

 

Aproveitando o gancho do Cairo, que continua na berlinda, semana passada lembrei a cena que nunca esqueço: um soldado egípcio, mutilado numa das guerras da região, abraçou-se às pernas de Ezer Weizman, ministro da Defesa de Israel, que assinaria o acordo de paz com o Egito. Outra cena que me ficou na memória deu-se à sombra das pirâmides. Ao contrário de Napoleão, passei um vexame que foi contemplado por 4.000 anos de história.

Um camelo cismou comigo e ficou andando atrás de mim. De início, fingi que não estava entendendo. Mas ele tanto insistiu em me fuçar que acabei perdendo a paciência e os bons modos.

Na inutilidade de xingar o camelo, xinguei o cameleiro em todos os idiomas que mal conheço. O cara pensou que eu queria dar uma volta montado no animal e aí foram os dois -camelo e cameleiro- que não me largaram. Terminei dando uma gorjeta ao homem para que fossem embora.

Não é agradável olhar de perto esse animal estúpido e solerte. Seus dentes são esverdeados, o hálito é deplorável. Durante séculos, ele vence a imensidão das areias com as suas gorduras acumuladas nas corcovas de sebo.

Ia xingá-lo uma última vez quando descobri que aquele era um camelo cego, de pupilas vazias e gastas pelos ventos do deserto. Daí a humilhação em que agora vivia, passando os dias rodando em torno das pirâmides, explorado por cameleiros excitados, levando no lombo turistas cevados e ignorantes como eu.

Posso esquecer tudo na vida, graças e desgraças, mulheres que amei e que talvez tenham me amado. Mas não esquecerei aquele animal estúpido e cego que passou a manhã se oferecendo ao freguês que não o alugou, que procurou um dono que não o quis e encontrou um amigo que não o compreendeu.

Diário Da Manhã (GO), 8/2/2011