Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Sócrates e o porco

Sócrates e o porco

 

O contínuo veio avisar que o sujeito queria falar comigo. Fui lá fora, e o camarada alto e magro levantou-se e apresentou-se: J. Campos. Homem de meia-idade, parecido com o Guimarães Rosa quando ria, aquele brilho nos olhos esverdeados, aquela mesma hesitação no falar, como quem procura sempre a palavra exata. J. Campos lera um livro meu, sabia-me de vagas inquietações e viera oferecer seus préstimos e seu livro, edição particular.


Campos saíra de seus ócios, enfrentara o calor da cidade para me trazer sua mensagem. Prometi ler-lhe o livro -e seria apenas uma promessa somada a outras que vou fazendo e me esquecendo de cumprir.


Por desencargo de consciência, folheei o livro para depois jogá-lo num canto qualquer. Mas o Campos mexeu em feridas cá dentro, não cicatrizadas ainda. Veio, sobretudo, ressuscitar uma velha leitura minha, “Le Phenomène Humain”, de Teilhard Chardin, um jesuíta francês que criou um caso com suas teorias.


Mas era emoção morta, nenhum dos meus amigos ou inimigos conhecia o livro de Chardin. E, como resolvera enfrentar a vida em termos práticos, enterrara Chardin e seu livro para sempre.


E eis que me surge o sr. J. Campos com o livro sobre as teorias de Chardin. E sinto um pouco de perplexidade e carinho, como quem, regenerado de uma vida de crimes, descobre anos mais tarde o insuspeitado sócio de um crime sepultado e insolúvel. Evidente, há terror nessa descoberta. Não só pela comparação que ela me sugeriu como pela descoberta em si. Pois essa descoberta pode ser Deus.


Seria inútil resumir a teoria de Chardin e os comentários de J. Campos a respeito. Em linhas gerais, podia dizer o seguinte: no dia em que o mundo estiver sob regime socialista integral e solidário, velhos organismos de outros regimes terão de sobreviver. Um desses organismos seria a igreja. E aí surge a questão: como a igreja sobreviveria em um Estado ateu e socializante?


Deixando de lado as escaramuças iniciais de ambas as partes, haveria de ser encontrada uma fórmula que desse ao Estado e à igreja autonomias e bases para a coexistência. Essas bases já começam a surgir, veladamente, no seio da igreja. Pronunciamentos esparsos, algumas teses mais afoitas.


Evidente, os altos escalões ignoram essa tentativa, mas a soma dessas tentativas, mais cedo ou mais tarde, corporificará uma doutrina específica para a situação que se criar. Foi assim no passado -e a igreja, sem trair seus postulados mais importantes, aí está depois de Lutero, da Enciclopédia, da Revolução Francesa, de Darwin, da Revolução Russa.


O jesuíta Chardin bolou a fórmula para a igreja depois de Engels e Marx. E, embora não aceitando passivamente a ontologia chardiniana, Campos avança mais um pouco -o que talvez tenha sido seu erro ou sua inexperiência. Chardin veio nas águas de uma pesquisa clássica: o homem como perspectiva e, ao mesmo tempo, construção do Universo. Isso junta, no mesmo leito, a filosofia idealista e a materialista -e Campos aprova tal promiscuidade.


Mas Chardin vai adiante: “Ser mais e unir-se cada vez mais. Donde: o homem tende a unir-se com todos os outros homens”. Até aí, a linguagem do jesuíta agradaria a tomistas e marxistas, incluindo o sr. J. Campos. Mas onde Chardin envereda por um caminho, o Campos por outro -eu empaco no mesmo lugar, sem enveredar por caminho nenhum- é na questão da presença de Deus nessa união. Para o sr. J. Campos, “felizmente, Deus não existe, ainda”. Mas vai existir -é o que garante o seu livro.


E, de repente, me sinto igual a um ateniense dos tempos de Paulo que adorasse a um Deus inexistente. Até que surge o apóstolo no Areópago e diz: “Atenienses! Há um Deus que vós adorais sem conhecer. E é desse Deus que vos venho falar!”. Campos repete -ao menos para mim- o mesmo encantamento de uma súbita descoberta: o Deus em que deveria crer não existe ainda, a culpa não é minha, é do Deus que ainda não existe.


Daí que lembro, a atenienses e cascadurenses, a máxima citada por Campos: mais vale um Sócrates inquieto do que um porco satisfeito. Assim sendo, que será do porco insatisfeito?


Folha de S. Paulo, 27/11/2009

Folha de S. Paulo,, 27/11/2009