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Sociedade, mídia e autocrítica

 

Está na moda falar em sociedade. Durante o regime militar, era comum a alusão à sociedade civil, em oposição a outro tipo de sociedade, a do sistema totalitário, que incluía alguns civis, mas era predominantemente gerenciada, tutelada e policiada por integrantes das Forças Armadas.


Agora se fala em sociedade, sobretudo nos meios acadêmicos e midiáticos. Tudo é cobrado em nome dessa tal sociedade, isolando-a do Estado, dos poderes constituídos, da economia, da polícia, até mesmo das manifestações culturais e artísticas.


A sociedade está sendo considerada consensualmente como uma vestal, integrada por anjos e querubins, a turma do bem, politicamente correta, que enaltece a virtude e condena o vício. Todos os que pecam ou ameaçam pecar atentam contra a sociedade e são previamente advertidos que ela não mais tolerará isso ou aquilo.


De tempos em tempos, elabora-se a lista dos maus, dos que agridem os valores da sociedade, que sempre está do lado correto, imune ao erro e ao mal. Listas mais ou menos fixas, com pequenas flutuações em torno de um eixo: o Estado em si mesmo, o Legislativo como um todo, alguns setores do judiciário e do empresariado, todos eles acusados de falcatruas feitas ou possíveis de serem feitas. Eventualmente, aparece na lista o bandido comum em circunstancial evidência.


A sociedade exige reparações, impõe regras aos outros, como um Catão pintado de marrom, Matrona de Éfeso sem jaça e, aqui entre nós, também sem graça. Afinal, que sociedade é essa sem o pecado original?


Uma sociedade que foi a última, em escala mundial, a abolir a escravatura. Sociedade que mantém e fomenta uma distribuição de renda que os próprios governantes admitem como obscena, necessitada de 304 anos para se tornar alguma coisa que preste. Sociedade em que a divisão maniqueísta dos bons e maus esconde preconceitos que vão da condição racial (a democracia das raças é uma ficção cultivada pela hipocrisia social) à condição econômica, criando e aumentando os excluídos dos bens e serviços indispensáveis à condição humana: saúde, educação e trabalho.


Sim, há os maus. Congressistas que ganham sem trabalhar, que vendem votos para atender os apetites do governo ou do poder econômico; juízes de futebol que aceitam propinas; marqueteiros bandidos que têm contas ilegais no exterior. São muitos e diversificados os que formam a lista dos maus, da "perduta gente" que Dante colocou na "città dolente". De onde vieram os Valérios, Dirceus, Delúbios, Malufes, Pittas, Dudas - estou citando a esmo, sem entrar no juízo de valor de cada um deles. São nomes que aparecem em quase todas as listas dos maus, das ratazanas apontadas à execração pública.


De onde vieram esses abomináveis espécimes humanos? São extraterrestres, aqui largados por um Ovni de más intenções para desgraçar o planeta Terra e, em especial, a sociedade brasileira? Ou foram aqui infiltrados pelo Bush para solapar nossas resistências físicas e nossas forças morais, corromper os justos que cultivam a decência e a honra da pátria estremecida?


Quem elegeu Lula, o homem mais bem informado do país, jurando que não sabe nada do que aconteceu e continua acontecendo em seu governo e no partido que fundou e do qual é presidente de honra? Quem elegeu FHC, que vendeu grande parte do patrimônio nacional a grupos de fora que pagaram o que nos deviam com o nosso próprio dinheiro? Que sociedade é essa que, a cada eleição, comete a burrice de eleger quem não deve, subornada por cestas básicas, camisetas de malha ordinária e bonés de plástico vagabundo? Ou, na outra ponta da corda, por cargos e verbas que recompensam o sacrifício de apoiar esse ou aquele grupo que toma o poder?


Uma sociedade que se expressa pela mídia, que não recebeu mandato algum, a não ser aquele que a si mesmo se atribui, da noite para o dia, se investindo na função de novo Adão dando nome às coisas, um Petrônio Árbitro que investiga a seu modo e em sua conveniência, que apura, julga e condena os adversários ou desafetos dos setores que representam e por eles são pagos.


Sociedade e mídia que dobraram-se ao arbítrio de um regime militar durante 23 anos, o espaço de toda uma geração que, com as exceções de praxe, "refugiou-se nas canções e poemas de protesto", na estrada da paz e do amor dos movimentos tidos como contestatórios que, afinal, se limitavam "à barba e à maconha" (Paulo Francis).


Esta crônica pode ser entendida como a autocrítica de um profissional da mídia que está na estrada há 59 anos. Tempo para burro, até demais, mesmo para um burro como o cronista. Numa das seis prisões durante o regime militar, um coronel me perguntou por que eu escrevia tanta besteira no jornal em que então trabalhava. Dei razão a ele. Até hoje, acho que não fiz outra coisa.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 27/1/2006