Dentre as causas das sucessivas e nunca resolvidas crises institucionais de que sofre o Brasil destaco a Constituição. É fácil fazer uma análise, ainda que superficial, das Constituições que tivemos, desde a primeira, republicana, a de 1891. Rui Barbosa - vem nas suas Obras Completas - chamou a si a responsabilidade pela Constituição. Foi grande, um portento intelectual, um semideus para milhões de brasileiros, quem preparou a primeira Constituição. O voto era descoberto. Rui não acreditava, provavelmente, na perfídia humana, nas qualidades negativas de quem disputa um cargo de mandato e quer desfrutar o poder.
Essa Constituição durou até o dia em que Getúlio Vargas, líder da revolução de 30, chegou ao Rio de Janeiro e formou o primeiro governo provisório, com base num ato constitucional. Tendo, portanto, derrogado a Constituição de Rui Barbosa, com base nesse ato, Getúlio Vargas exerceu a terceira ditadura republicana, até que os paulistas se levantaram e, de armas na mão, exigiram uma Constituição. Daí a denominação da revolução de 32, Revolução Constitucionalista. São Paulo perdeu nos campos de batalha, mas veio a Constituição de 34, a mais efêmera de todas as que o Brasil teve. Constituição mista, com o voto proporcional e a representação classista. Foi um fracasso total. Em pouco tempo, os estados de exceção prevaleceram e em 11 de novembro de 1937 veio outra Constituição.
A Constituição de 37 tinha o fundo positivista, correspondente à formação intelectual de Getúlio Vargas. A Constituição foi elaborada por Francisco Campos, autor de um livro O Estado Nacional , mas cedendo, evidentemente, aos objetivos de Getúlio. Com base no artigo 180 da Constituição, Getúlio Vargas governou discricionariamente, como ditador, durante 8 anos, até que em 29 de outubro de 1945 as Forças Armadas, pelos seus comandantes, o depuseram, permitindo que ele se asilasse no Brasil, mesmo, em São Borja e, depois em Santos Reis, em duas fazendas de sua propriedade.
Eleito em dezembro de 1945 presidente da República o marechal Eurico Gaspar Dutra, foi convocada uma Constituinte, que nos deu a Constituição de 1946, adotando, como as anteriores, o voto proporcional. A Constituição de 1946 vedou a delegação de poderes e não deu ao presidente eleito uma arma, como a Medida Provisória, para, também ele, legislar, ainda que provisoriamente. Durante a vigência dessa Constituição um presidente sofreu duas tentativas de insurreição, três presidentes foram depostos, um renunciou e de três foram casados direitos políticos. Como demonstração de crise política não precisamos de mais nada. Getúlio suicidou-se, manchando com uma gota de sangue a modorra a que é habituado brasileiro, como o retratou Rui Barbosa, ao elogiar o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, num formoso e famoso discurso.
Veio depois a Constituição de 1967, a dos decretos leis, e decurso de prazo, mas com o voto proporcional, uma de nossas desgraças, é bom, repetir. Essa Constituição durou tanto quanto a duração dos governos militares. O presidente José Sarney convocou uma Constituinte, que nos deu a Constituição atual, como comentou O Estado de S. Paulo, no excelente editorial de primeiro de outubro passado. Tenhamos, pois, coragem e lutemos pelas reformas, a começar pelo voto e que seja o distrital. Estamos numa fase de crises tão multiplicadas que já ninguém mais nota essa peculiaridade do Brasil. Está em vigor até hoje, com seus defeitos, alguns males somados, outros ainda não, e o voto proporcional, o mal maior de que sofre a política brasileira. É o que tenho dito e repetido à exaustão, e que vejo tese compartilhada pelo O Estado de S. Paulo , no excelente editorial citado acima. Partamos, pois, para as reformas, e que a primeira seja a do voto distrital.
Diário do Comércio (São Paulo) 05/10/2004