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Sob o império da lei

 

Ainda meio inseguro quanto à compreensão do que pretendo escrever abaixo, taquei o título aí em cima e continuo inseguro, embora um pouco menos. O título parece com os dos filmes de caubói de antigamente, quando cidades do tempo do bangue-bangue nos Estados Unidos viviam entregues a bandidos que usavam tiros até para matar baratas (Glenn Ford uma vez matou uma, enquanto relaxava numa banheira, com o inseparável Colt 45 ao lado; assisti pessoalmente, embora não lembre o título do filme) e temo que o que vou dizer seja tido como uma exortação à transformação dos nossos grandes centros urbanos em cidades do faroeste.

Mas claro que não farei uma exortação desse tipo e a razão é bastante simples. Em primeiro lugar, o que parece não ter importância alguma, sou contra a violência. Em segundo lugar, menos um pouco desimportante, estamos há muito tempo em falta de mocinhos, em todos os níveis de Governo. E, agora sim, importante, já vivemos nessa situação há muito tempo. Somos cidades de faroeste, diferençadas apenas por detalhes, como carros e motocicletas, em vez de cavalos, e a ausência de coldres recheados à mostra. De resto, basta pensar e ver que, em cidades onde morre mais gente baleada do que em países em guerra, só podemos ser uma espécie de faroeste.


Já nos acostumamos e por isso mal notamos. Quem nota e pode, vai morar em fortalezas ou complexos penitenciários, eufemisticamente rotulados de "condomínios", mas na verdade com mais segurança do que a velha Alcatraz, embora inútil pois às vezes os próprios agentes dessa "segurança" estão por trás ou ao lado de sua violação. Quem pode, dá no pé e vai morar em algum país no qual não seja necessário rezar sempre que um filho vai à rua e um celular para cada um desses filhos não é considerado equipamento de segurança indispensável. Quem chega de fora fica assombrado em ver o número de grades pelas quais tudo é cercado, de edifícios a praças públicas, como se fosse normal o cidadão viver por trás de grades, enquanto o pau come solto lá fora.


Nossas medidas pessoais de segurança já estão ficando tão arraigadas que achamos que elas fazem parte natural da vida. E encontramos sempre gente para dizer que nossas cidades são iguais a quaisquer outras grandes cidades do mundo, o que patentemente não é verdade. Acontece todo tipo de crime em muitas cidades grandes e civilizadas no exterior, mas há poucas como, por exemplo, Rio e São Paulo. Não é normal o sujeito ter de andar com documentos e, para não tê-los furtados, ser aconselhado pelas autoridades a portar cópias desses documentos. Não é normal ver a luz verde acesa para os pedestres e esperar que os carros parem mesmo, para ousar atravessar a rua.


Não é normal o kit-assalto que muita gente já usa, o qual inclui desde as mencionadas cópias de documentos a bolsos nas cuecas, dinheirinho para o assaltante, relógio para o assaltante, companheiro para ficar do lado de fora enquanto a gente tremulamente vai a um caixa eletrônico, dinheiro maior entre a meia e o sapato e um terço rezado pelas mães, enquanto os filhos adolescentes vão a uma festinha.


Chega dessa besteira de dizer que isso também é normal em Nova York, Paris ou Miami, porque não é. Tampouco é normal ter medo da polícia e de parar para a fiscalização, achando que se trata de uma blitz falsa. Blindar carros de família também não é normal. Botar janelas à prova de balas em apartamentos não é normal. Ter delegacias de polícia invadidas não é normal.


Ler todo dia sobre alguém que morreu por bala perdida também não é normal.


Ter feriados decretados por bandidos não é normal. Armar guaritas de estilo militar e cancelas à entrada de ruas públicas não é normal.


Mas para nós ficou. E vai piorando. Nada impede, a não ser a organização de uma liderança suficientemente poderosa, que o Rio de Janeiro, por exemplo, termine por ser inteiramente dominado por bandidos. Hoje, por exemplo, segundo me dizem, os policiais evitam usar suas identificações funcionais, porque, quando chegar a normalíssima hora do assalto ao ônibus, à agência bancária ou mesmo à banca de revistas e os assaltantes descobrirem que um dos presentes é policial, o fuzilam na hora. E, também segundo me dizem, há policiais cujos salários os obrigam a morar em favelas perigosas que não podem deixar a farda lavada secando do lado de fora, para não descobrirem que ali mora um tira e o matarem, ou alguém da família dele.


Para resolver isso, que cresce como um câncer em metástase desenfreada, os governos oferecem palavrório e legislação. Devemos ter as leis mais avançadas do mundo e vêm vindo mais. Por exemplo - e chego finalmente ao ponto mais polêmico -, agora o plano é desarmar os cidadãos, proibindo terminantemente o porte de armas, mesmo que exclusivamente dentro de casa.


Não tenho arma e sou visceralmente contra seu uso, mas não sou maluco. O cidadão que respeitar a lei não terá mais arma em casa, ou nem mesmo no sitiozinho, onde relaxar virou privilégio de quem pode contratar seguranças e ter cachorros ferozes por tudo quanto é canto. Mas o bandido? Ah, este estará de agora em diante perdido, porque o novo dispositivo legal cerceará sua ação criminosa. Verdade que terá certeza de que poderá entrar na casa de qualquer cidadão ordeiro, porque esse cidadão não contará com uma arma para defender-se. Mas o bandido poderá ser facilmente vencido. Basta que se guarde um exemplar da nova lei para mostrar ao assaltante: "Olhe aí, diz aqui que é proibido o porte de armas." "Ah, desculpe", dirá o assaltante, pedindo licença para retirar-se e saindo sem bater a porta. "Foi mal, eu não tinha sido informado." E não duvido nada que, se o cidadão tiver em casa um revólver, mesmo que não dê um tiro no assaltante, seja preso e processado inafiançavelmente, enquanto o assaltante, réu primário, servirá pena de dois anos em regime semi-aberto. Tudo sob o império da lei.




O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 03/08/2003

O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em, 03/08/2003