Numa sociedade desigual como a nossa, as chamadas ações afirmativas podem ser fundamentais para garantir oportunidade para quem sempre ficou de fora. É claro, porém, que num sistema em que há o vestibular, a simples importação de uma política de cotas gera distorções sérias e precisa ser discutida. Já está sendo e não é isso o que vou fazer aqui. Quero só aproveitar para estender a reflexão à cultura. Como lembra o antropólogo Hermano Vianna, a diversidade é uma das principais características da cultura brasileira, causa imprescindível de nossa riqueza cultural. Também Sérgio Buarque de Hollanda frisou que a cultura luso-brasileira se distingue “precisamente pelas suas qualidades universalistas, pela sua capacidade de acolher formas dissonantes, acomodando-se a elas ou acomodando-as a si sem com isso perder seu caráter”. E Gilberto Freyre assinalou a tendência portuguesa de dissolver-se nos outros povos a ponto de parecer ir perder-se nas culturas estranhas. E acentuou que essa cultura portuguesa, já permeável e assimiladora por si mesma, no Brasil ainda vê acentuados esses traços e se torna plural e aberta a outras.
Mesmo com as ressalvas que podem pedir, se aplicada a aspectos mais amplos da sociedade – como as classes sociais ou as relações raciais - essa concepção ainda parece inegável no que se refere à cultura em nosso país e tem sido reiterada e aperfeiçoada.
O crítico Eduardo Portela há pouco tempo chamava a atenção para o fato de que aquilo que identifica o projeto cultural brasileiro é uma rede de relações inesperadas - não apenas nas grandes linhas culturais, mas nas microtecnologias da vida cotidiana - e que a grandeza de Gilberto Freyre esteve justamente em saber ser um pensador relacional, capaz de entender a natureza pluricultural e intercultural do Brasil real, e da diversidade cultural brasileira. Mais que isso, em uma brilhante análise, Portela lembra como o elogio da diferença, na obra de Freyre, traz no bojo o reconhecimento implícito de cada um ser “o outro”, sem que com isso a diferença seja congenitamente dissociativa ou segregacionista, e sem que o diferencialismo seja predatório. Dessa forma, evidencia-se que “os processos emancipatórios somente são levados a bom termo com a precisa compreensão das diferenças imunes ao particularismo e à uniformização e à uniformatação”. Essa recusa a viver a diferença como fragmentação e o desejo de incorporá-la como amálgama são muito característicos da cultura brasileira. Talvez seja a principal contribuição que podemos dar ao mundo.
Francisco Weffort já acentuou como nossa sociedade, tão excludente do ponto de vista social, tende a ser includente na cultura. Mais que isso: não se limita a ter essa tendência, mas vive esse ideal como referência e padrão a ser alcançado. Ainda que na prática nem sempre o consiga, tem o desejo consciente de assim ser e transforma essa vontade num de seus mitos. Num estudo de história social e econômica, os ideais assim formulados podem até ser corrigidos pela análise da prática verdadeira - e vários estudiosos têm apontado algumas possíveis correções. Florestan Fernandes, Raimundo Faoro e Antônio Candido são apenas alguns deles. Mas num exame da cultura, vemos que a própria constituição dessa mitologia nacional é significativa. Podemos nem ser tão belamente integrados, mas é isso que sonhamos, é assim que gostamos de nos imaginar. O tal mulatismo cultural a que Roberto da Matta se refere. A Roma morena de Darcy Ribeiro.
Esse aspecto é que convém ter em mente quando se fala em multiculturalismo no Brasil. Não tem a ver com o que está recebendo esse nome pelo mundo afora - afirmação de minorias culturais em compartimentos estanques, muitas vezes xenófobas e melindrosas. Nosso ideal é outro: um pluriculturalismo integrador, um interculturalismo. Um transculturalismo, como chama Sergio Paulo Rouanet. Jamais uma construção em que co-existam uma cultura hegemônica com várias minoritárias fragmentadas e cheias de barreiras entre si. Em nossa identidade, construída ao longo de cinco séculos, há uma busca de confluências, assimilações, relações variadas, uma aceitação tradicional dos sistemas de rede, do isto e aquilo e mais aquilo em vez de ou isto ou aquilo.
Num momento em que a tecnologia faz convergir para um único meio todas as mensagens, e os interesses desse processo se confundem com os do capital (tanto na indústria cultural quanto na infra-estrutura das telecomunicações), é ainda mais fundamental pensar no convívio enriquecedor das vozes múltiplas e individuais. É hora de reconhecer o papel da cultura criadora - aquela que, lembra Alfredo Bosi, é a única que consegue amorosamente fazer a ponte entre a erudita e a popular, a expressão individual e a cultura de massas. A que tem conseguido ser fiel ao óbvio: a singularidade brasileira é sermos plurais.
Como a criação de agências reguladoras culturais está na ordem do dia, vale lembrar que qualquer fiscalização que não parta da valorização e do respeito à cultura criadora tende a ficar prisioneira de si mesma e a causar danos irreversíveis a todos os cidadãos, atuais e futuros. A mistura de leviandade com palavras de ordem pode matar o que o Brasil tem de mais original, talvez a melhor contribuição que possamos dar à humanidade.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 13/10/2004