Esta vida airada de saltimbanco das letras ainda me mata. Quando comecei a perpetrar meus livros, os escritores apenas escreviam. Hoje – é o que penso resignadamente, enquanto afivelo o cinto e observo os letreiros de “não fumar” -, há períodos em que o escritor trabalha como funcionário do departamento de vendas da editora e, nesse esforçado mister, às vezes viaja tanto que volta e meia, ao despertar num aposento estranho, leva um certo tempo para descobrir em que cidade está. E eis-me de volta a um avião.
Nada como este avião, para lembrar como sou antigo. Tenho a impressão de que, se contasse o que eram as viagens de avião dos velhos tempos, ia ser tido na conta de mentiroso. Escolha de menus na classe econômica, talheres de metal, pratos de louça, refeições quentinhas, precedidas por aperitivos e acompanhadas por vinhos. E até eu tenho de garantir a mim mesmo que não estou inventando coisas, quando recordo churrascos gaúchos em voos da Varig, com um comissário-churrasqueiro usando chapéu de cuca. Em viagens ao exterior, abriam-se garrafas de champanhe para brindar a passagem pelo equador e distribuíam-se diplomas assinados pelo deus Netuno.
Não faz tanto tempo assim, a velha ponte aérea Rio-São Paulo, dos saudosos Electras, chegava a ser um passeio muito agradável, com a parte de trás da cabine arranjada como uma espécie de sala de estar, onde se prosava, se fumava e se bebia uísque de boa qualidade. A expressão “happy hour” ainda não tinha sido inventada, mas era isso que alguns amigos e conhecidos meus faziam. Segundo o folclore da época, havia alguns que iam e vinham somente para curtir essa sala dos Electras.
Ninguém pensava em problemas de segurança, não havia a revista e a inspeção a que hoje os passageiros têm de submeter-se. Lembro com um arrepio o dia em que, por eu me encaixar à perfeição num tal perfil do terrorista que algum órgão de segurança americano criou, quiseram me levar em cana em Chicago e quase levam mesmo, tendo os orixás me salvado pelo gongo. E, desse tempo para cá, as coisas só fizeram piorar. Inevitável avaliar as pessoas que embarcaram comigo. O de bigodinho que acaba de se sentar parece um pouco nervoso. Terá inserido em si um supositório explosivo, como agora dizem que é a nova onda, em matéria de terrorismo? Quem vê cara não vê supositório. Só saberei, ou não, depois de chegarmos ao destino
Encaixei-me no que cinicamente chamam de poltrona e pressagiei o dia em que os comissários de bordo empregarão pés-de-cabra para socar nos assentos os passageiros mais graudinhos. Isso com certeza será trombeteado como mais um serviço para maior conforto do passageiro. Não há por que duvidar dessa possibilidade, pois é o mesmo tipo de argumento que vi faz pouco, num comercial de tevê ou num anúncio de revista. Uma empresa agora não dá mais nada aos passageiros, com a possível exceção de um copo de água de torneira. O resto é vendido, mas ela se gaba disso, enquanto anuncia um cardápio baratinho, para os que tiverem uma queda de curva glicêmica durante o voo e precisarem comer alguma coisa. O que antes era incluído no preço agora é cobrado à parte e isso é qualificado como vantagem para o passageiro.
Mas talvez a situação no Brasil não seja tão ruim. Já li sobre diversas novidades em matéria de viagem aérea que espero que não sejam adotadas aqui. Uma delas é a cobrança pelo uso do banheiro do avião. Fico imaginando um passageiro sem um vintém no bolso e sem cartão de crédito. Se o problema for xixi, menos mal, talvez. Pode dar para pedir aos demais que olhem para o outro lado, enquanto a questão é resolvida da melhor forma viável, a necessidade é a mãe da invenção. Em casos mais graves, quero crer que, movidos não tanto pela solidariedade quanto pelo instinto de sobrevivência, os passageiros nas proximidades da vítima da infausta premência farão uma vaquinha para pagar o banheiro dela. Nada que, com boa vontade, não possa ser resolvido e, como sempre, o mercado encontrará soluções.
Em outro exemplo, a companhia aérea cobra dobrado, se o traseiro do passageiro ultrapassa determinadas proporções. Isso provavelmente é divulgado como um serviço espontâneo em prol da saúde pública, por incentivar a manutenção de um corpo esbelto, sem enxúndias que façam mal ao organismo e ao bolso. No início, acredito que os gordinhos terão os fundilhos medidos por funcionários especializados ou por nadegômetros eletrônicos, mas logo essa tarefa, por acarretar custos quiçá onerosos, será repassada ao consumidor, que, ao comprar a passagem, terá de informar suas medidas posteriores, aceitando ter de tomá-las novamente no check-in, nos casos em que houver a suspeita de que as declaradas não correspondam à realidade.
Não existe razão para crer que as mudanças vão parar aí. Não haverá de ser tão impossível assim que, ao menos em viagens curtas como as entre o Rio e São Paulo, passem a ser aceitos passageiros em pé, como nos ônibus e trens urbanos. A preços baixos, essas viagens talvez tivessem uma freguesia apreciável. Quem sabe se, para quem more em Congonhas e se veja surpreendido em Guarulhos pela Mãe de Todos os Engarrafamentos, não seria uma opção prática para voltar para casa antes da meia-noite?
Mas chega de mau humor e caturrice, o avião já aterrissou. Ligeiro sobressalto, depois que um comissário fez um pequeno discurso sobre a limpeza da aeronave para os próximos passageiros. Seremos solicitados a realizar essa tarefa? Não, ainda não chegamos lá. Mas, dentro em breve, acho que podemos esperar que nos cobrem uma porcentagem do valor do bilhete como taxa de faxina – mais um serviço de nossa companhia aérea favorita.
O Globo, 25/10/2009