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Seremos todos felizes

 

Pelo menos no meu caso, a leitura dos jornais vem provocando uma leve tontura, por vezes não tão leve assim. Estou seguro de que os governantes eleitos não pensam em outra coisa que não o bem-estar da coletividade, pois haverá de ter sido esse ideal o que os moveu a candidatar-se, enfrentando a canseira, o estresse e a despesa de uma campanha, para depois padecer sob a rotina estafante e ingrata da vida pública. Sabemos que, até neste talvez enganosamente sereno domingo, estão ocorrendo reuniões pressurosas em todos os cantos do País, buscando o que fazer para começar desde já a trabalhar pelo bem comum. Também sabemos que os eleitos estão agora mesmo se debruçando com afinco sobre diagnósticos, estudos e planos para a solução dos problemas nacionais, querem trabalhar, querem fazer por nós tudo o que prometeram e mais alguma coisa.

Deve ser essa a causa da tontura, que possivelmente atinge alguns de vocês também. Pois não é que, embora saibamos de tudo isso, a leitura dos jornais dá impressão bem diversa? Vai ver, é mais uma armação da marvada mídia, tão frequentemente denunciada. Pois a sensação que se tem é de uma sarabanda frenética, açodada e agoniada de cadê-o-meu, como-é-que-é-o-meu-aí, dê-cá-meus-cargos, quanto-eu-levo-nessa e meus-cinquentinha-por-cento-de-aumento. Fazer alguma coisa pelo povo vem depois, primeiro é preciso o fazedor se fazer, dentro do conceito de servir à pátria atualmente em vigência. “Servir” e “pátria” continuam as palavras-chave, só muda a regência verbal, um pormenor. Não é “servir à pátria”, com essa crase enxerida aí, é “servir a pátria”, preferivelmente numa baixela de prata. Ou, caso mais encontradiço, “servir-se da pátria”. A gramática é maravilhosa, todos deviam estudá-la.

Obra perversa da mídia ou não, o que vemos aqui é o exato oposto da famosa exortação do presidente Kennedy aos americanos, quando ele disse “não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país”. A originalidade brasileira impôs à frase de Kennedy o que Zecamunista me descreveu como “revertério dialético” e aqui todos primeiro querem saber o que o País pode fazer por eles, preferivelmente em dinheiro. É colegiado pra lá, diretoria pra cá, jetom pra acolá, estipêndio, verba, subsídio, numerário, função gratificada, cargo em comissão, cofrão, sacolão, dotação, gratificação, diária, ajuda de custo, auxílio-qualquer coisa, tudo sendo disputado palmo a palmo, numa exibição grotesca e despudorada que, de tão repetida, já nem é notada. E quem reclama é ainda desdenhosamente chamado de moralista, classificação, neste caso, aplicável a quase todo o Código Penal.

E o que poderia ser interpretado como uma notícia amena, agora desperta preocupação. Vocês também devem ter lido nos jornais que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um novo direito para nós, brasileiros: o direito à busca da felicidade. Não falta muito para entrar na letra da nossa sempre prestigiada Carta Magna. Não é assim muito original, porque vem da Declaração da Independência americana, novidade de 1776. Mas não deixa de ser engraçadinho, maneiro para citar em discursos de posse, formatura, inauguração e movimentos por melhores condições de trabalho. Também serve para adesivos de para-brisas, camisetas e circulares pela internet com os dizeres “Ser infeliz é inconstitucional”. E há de ter outros proveitos, vivemos uma época muito inovadora.

Mas, sem querer ser espírito de porco, não posso deixar de lembrar que, hoje em dia, iniciativas para ditar nossa conduta e até nossas opiniões estão ficando cada vez mais comuns. Existem autoridades, em todas as áreas, convictas da existência de um “certo” absoluto para praticamente tudo na vida, desde comer até educar um filho, e esse certo nos deve ser imposto para nosso próprio bem, mesmo que discordemos. De forma semelhante ao que acontece com o moralismo, a acusação aos que se opõem a esses “certos” é a de ignorância e reacionarismo pernicioso.

Aparecerá algum parlamentar que proporá a regulamentação de tão básico direito. Na ausência de uma lei que lhe dê condições de aplicação, o preceito constitucional pode não ter eficácia alguma. Mais ainda, o que é de capital importância, pois sem isso nada aqui vai em frente, a lei regulamentadora resultará na geração de empregos e até mesmo de novos campos do saber. A primeira providência será a criação de uma comissão de notáveis para elaborar um anteprojeto em que se definam não só a felicidade, como os meios lícitos para atingi-la, não devendo, por exemplo, admitir-se o assalto, excetuado, como hoje, o assalto aos cofres públicos, pelas vias consagradas em nosso direito consuetudinário. Não será, com certeza, tarefa simples e já posso antecipar com vivo interesse eletrizantes debates entre, digamos, epicuristas de esquerda e estoicos de direita. A felicidade é uma sucessão contínua de prazeres? É uma casinha pequenina, com gerânios em flor na janela? É uma bela mamata ou suculenta sinecura?

De acordo também com o uso atual, haveria ampla consulta popular, com a subsequente incorporação de dispositivos que levassem em conta a felicidade de minorias e excluídos. E, enfim, depois de muita labuta e controvérsia, teremos o Código da Felicidade e a Agência Nacional da Felicidade, permanente gestora de toda essa área. Serão emitidas normas para a correta felicidade e talvez se crie um juizado especial, para os delitos contra a busca da felicidade. E pode ser que a felicidade venha a ser mais ou menos como o voto, um direito e um dever. Um direito por cujo exercício pagaremos imposto; e um dever por cujo descumprimento pagaremos multa. Confere.

O Estado de São Paulo, 21/11/2010