Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Sem limites

Sem limites

 

Não há explicação possível, além da tentativa de testar os limites da democracia, para o presidente Bolsonaro ter compartilhado um vídeo convocatório de uma manifestação contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) organizada por suas milícias virtuais, que anseiam transformarem-se em reais com incentivos como esse.

Alegar que o compartilhou apenas com um grupo de amigos de WhatsApp só confirma que apoia a convocação, pois se a repudiasse, como fariam líderes democráticos com noção da responsabilidade do cargo, não brincaria com fogo, nem mesmo em privado.

A gravidade seria de outra dimensão se Bolsonaro realmente não entendesse o papel fundamental de um presidente da República num país que luta para sair da recessão econômica, que trouxe o desemprego e o aumento da desigualdade para o centro do debate político radicalizado.

Mas os permanentes movimentos autoritários do presidente e de seus áulicos, especialmente os militares, indicam que o caminho traçado por ele não é o do debate democrático, mas o do enfrentamento permanente com as instituições que lhe limitam os poderes.

Bolsonaro esconde-se atrás da turba que sua irresponsabilidade alimenta, alega que não tem controle sobre as massas que o apoiam nas redes sociais. Desde a campanha presidencial é assim que atua, eximindo-se de responsabilidade sobre atos que estimula através da retórica do ódio.

O trabalho sujo, as milícias fazem. Seus ataques ao Congresso, em especial ao presidente da Câmara Rodrigo Maia, ao Supremo, à imprensa profissional independente, são repercutidos nas redes e impulsionam a agressividade odienta que ameaça a estabilidade institucional do país.

A disputa política em torno do controle do orçamento, com emendas impositivas dos parlamentares retirando do Executivo a gerência sobre R$ 30 bilhões, é caso para ser resolvido dentro da relação de dois Poderes teoricamente iguais e harmônicos.

A crise é sintoma de um Executivo que não tem base parlamentar, e pretende compensar essa falha com um populismo desenfreado que só funciona em republiquetas de banana. Destino de um país que se submete aos delírios de vários tipos de dirigentes populistas, de esquerda ou de direita.

A situação chegou a tal ponto de degradação que o grupo político que tenta oferecer alternativa republicana aos extremismos a que estamos submetidos é capaz de investir com uma retroescavadeira sobre policiais amotinados, mascarados e armados, massa de manobra do grupo político do presidente da República.

Chegar a esse ponto, mistura de chanchada com a mais pura violência que vitimou o senador Cid Gomes, o tresloucado motorista da retroescavadeira, como se vivêssemos permanentemente em um filme de Tarantino, todo mundo matando todo mundo, é ir ao fundo do poço e permanecer lá, sem chance de recuperação.

Não há possibilidade de uma retomada econômica com um clima de instabilidade política propiciado pelo próprio presidente da República. Ainda mais quando as reformas necessárias dependem do Congresso, que o presidente ajuda a demonizar junto a seus seguidores. Dando pretexto a uma eventual tentativa de golpe, como se o fracasso de seu governo em áreas fundamentais como a educação, o meio ambiente, relações externas, fosse devido às dificuldades que o Congresso lhe impõe, e não à incompetência de titulares escolhidos por ele, estimulados a radicalizar ideologicamente antes de construir perspectivas para o futuro.

Os êxitos potenciais da área econômica, aí incluído o setor de infraestrutura e privatizações, são obstaculizados por problemas criados dentro do núcleo duro do governo, a partir do próprio presidente da República, que tem que compatibilizar sua índole autoritária e populista com o espírito liberalizante do projeto econômico, que nunca foi o seu.

É escandalosamente preocupante que o próprio presidente da República dê continuidade a comentário irresponsável do general Augusto Heleno, que passou de bombeiro a incendiário à medida que os militares ponderados, como parecia ser o seu caso, começaram a ser malvistos nos arredores do gabinete presidencial.

É o radicalismo de Bolsonaro que dá o tom atualmente no Palácio do Planalto, e vozes como as do general Santos Cruz, demitido por intrigas palacianas, foram superadas pelo radicalismo sabujo dos que poderiam trabalhar pela democracia, mas se acomodam no poder a qualquer custo.

O Globo, 27/02/2020