Os prejudicados pelo julgamento do mensalão não têm conseguido armar boas defesas, perante a chamada opinião pública. É muito natural que protestem e argumentem, no que, além disso, exercem direito indiscutível. E mais natural ainda é que se eximam de qualquer culpa e procurem outros responsáveis pela trapalhada que aprontaram. Sei, sem ironia, que comparo mal, mas, quando eu era estudante de Direito, a gente visitava penitenciárias e quase todos os detentos nos contavam histórias, às vezes mais tristes que “Tornei-me um ébrio”, sobre sua inocência. Na verdade, acredito que alguns dos condenados, como alguns daqueles detentos, se achem honestamente inocentes ou, no máximo, vítimas da conjunção maligna de circunstâncias adversas.
Mas imagino que, para consumo interno, eles e seus amigos e aliados estejam fazendo uma autocriticazinha, não é possível que não estejam. Devem estar examinando os inúmeros erros de avaliação e de estratégia em que incorreram, as posturas que se revelaram equivocadas, os momentos em que se deixaram tomar por voluntarismo ou soberba, as barbeiragens que cometeram. Mediram outros com sua própria régua e tomaram sustos, como o que lhes deram ministros do Supremo nomeados por eles. Continuo a achar óbvio que o que fizeram deu no que deu porque foi desastrado e mal concebido desde o começo, ou não teria resultado tão fragorosamente catastrófico. Realmente é chato inventariar erros, mas com certeza é o único jeito de ver os acontecimentos numa perspectiva desapaixonada e pelo menos aprender com eles.
Para consumo externo, a situação tem sido mais difícil. A tese de linchamento não cola, principalmente diante da aprovação generalizada da ação do Supremo. A atribuição de responsabilidade à mídia é uma besteira cediça, que lembra o tempo em que o imperialismo norte-americano era responsável até pelas secas. A mídia não está por trás, que eu saiba, dos escândalos do gabinete da Presidência em São Paulo ou da Advocacia-Geral da União. Se ninguém tivesse feito nada errado, não haveria mídia que conseguisse levar alguém a uma condenação criminal. E novos erros de avaliação, ou pelo menos sinais de descontrole, se evidenciam nas inoportunas menções às deficiências de nosso sistema penitenciário, que vão desde as afirmações do ministro da Justiça a um projeto de lei delirante sobre presos no Brasil. Para quem observa os fatos com o olho cínico que já se habituou à nossa realidade, essa inopinada preocupação é sinal de que, na hora em que os bacanas vão em cana dura, aparece logo alguém para amaciar.
A conclusão a que acabei chegando surpreendeu a mim mesmo, o mundo dá muitas voltas. No tribunal, eles foram condenados, mas, fora dele, está disponível uma explicação muito mais persuasiva que o chororô sobre as tais elites que ninguém sabe quais são, conspirações golpistas e demais besteiras, a saída consuetudinária. Acho que quem primeiro a invocou, embora não com esta designação, foi o ex-presidente Lula, quando alegou, mais de uma vez, que determinadas práticas como, se não me engano, o caixa dois são habituais no Brasil. Ou seja, uma maneira de dizer: “Sou, mas quem não é?”
Claro, o errado não se torna certo por ser prática de muitos, ou até de quase todos. Mas não apenas quem sai aos seus não degenera como, mais ainda, mesmo quem não é cristão há de ver sabedoria na observação segundo a qual, antes de criticarmos o cisco no olho do próximo, devemos cuidar da trave em nosso próprio olho. Não nos beneficiaremos nunca do julgamento que está sendo chamado de histórico, se acharmos que ele condenou gente diferente de nós, saída sabe-se lá de que buraco. Não é nada disso, são brasileiros como nós, aqui criados e educados, dentro da mesma História e da mesma cultura. O “sou, mas quem não é” pode ser cara de pau, mas não é descabido.
Vamos, naturalmente, excluir o gentil leitor e a encantadora leitora, bem como as senhoras suas mães. De resto, o nosso povo e, naturalmente, os políticos que dele emergem mantêm uma tradição de desdém pela lei, de jeitinhos, de tráfico de influência e pistolão, de assalto e desrespeito aos bens públicos, de clientelismo e de todas as outras iniquidades a que já nem prestamos muita atenção, de tão habituais. Mas não existe um “eles” à parte de nós, somos nós mesmos. Nosso comportamento é de plateia, mas somos atores. E não é em algum país remoto, é aqui no nosso.
Agora mesmo, somado ao vasto rol de falcatruas que vemos aumentar todo dia, descobriram uma quadrilha que vendia dados sigilosos. Ou seja, quem confiou no Estado e quase nunca há escolha e lhe forneceu seus dados, na verdade os pôs no mercado, onde, por seu turno, comprador também criminoso é o que não falta. E foi lançada a novidade do “kit concordata”, destinado a fraudar a lei em série, como numa linha de montagem.
Lá se vai também a transposição das águas do Rio São Francisco, com as obras abandonadas e caindo aos pedaços, depois de anos de desperdício, incompetência e possivelmente ladroagem. E é assim em toda parte.
Os envolvidos em corrupção e crimes correlatos não foram os primeiros, são herdeiros de uma velha tradição nossa. Não são exceções inusitadas. Antes, são a regra, tanto entre antecessores quanto entre contemporâneos. O inusitado são as punições.
Mas não achemos que, punindo-os como se o que fizeram não estivesse de acordo com nossos costumes, vamos finalmente viver sob o império da lei e da ética, sem ter mudado nossa relação frouxa com valores básicos, fingindo que não vemos nossa cumplicidade compreensiva e tolerante. Ponhamos a mão na consciência e reconheçamos a verdade. Não podemos atirar a primeira pedra, porque o pecado começa conosco.
O Globo, 2/12/2012