Os 3% em que Lula ficou aquém da barreira da glória no primeiro turno, leva alguns pequenos políticos, amantes do catastrofismo, a passar a contar, do dia para a noite, a desventura, castigando o desmedido do intento perdido por milésimos. É como se o infortúnio de última hora implicasse o castigo duro pela ambição do ganho, numa quase maldição pelo sucesso quasissimamente logrado.
O País se ajustou, nas últimas semanas, ao que via como o fato consumado, não só do sucesso do petista, mas da vitória tucana. A chegada aos 50% de intenção de votos ibopeanas acompanhava-se pelo teste peremptório das bocas-de-urna. Os imutáveis 46,7% abriram fenda suficiente para que nela se enroscassem todas as expectativas de forra no segundo turno, aberto à compensação de todos os devaneios.
O sucesso logo de Lula rematava, como a boa fatalidade, esta enorme acomodação da consciência do Brasil profundo, na segura e democrática ascensão do candidato do PT. A falha da ultimíssima hora, entretanto, dá asa a todas as elucubrações. Lula não teria, afinal, passado a praia, onde sua morte política à undécima hora, acalanto de todos os adversários, deixaria, afinal, com a última palavra, o Brasil de dantes, no seu quartel de Abrantes. Agora, mais que nunca, os antagonistas ao PT vão encher a boca da tese de que um segundo turno é uma nova eleição.
Esta crença na volta ao marco zero dos situacionistas confia na virada do jogo, pelos eleitores, ainda tocados por todos os confortos do status quo. Do reacionarismo confesso ao bem-bom da preguiça de mudar e ao conforto do ninho quente, nas vantagens a perigo do sistema. Por força, a mudança incomoda muita gente, mas a esperança de conquistá-la galvaniza muito mais. De toda forma, no folclore do último arreganho do que está aí, multiplicam-se os cálculos, e imaginários, agora, da catástrofe do petista, e a santa aliança de todos que a congreguem, contra a temeridade de desinstalar o mini-Brasil. Só que, na corrida que ora se abre, não se dão de novo todas as cartas do baralho. Mesmo se, teoricamente, se o parta ao meio, no tempo de mídia.
Os quase 50% de Lula já são conta feita e refeita, numa eleição em que, afinal, os grotões já se pronunciaram de todo, e acertaram em boa parte o seu toma-lá-dá-cá, na posição subalterna em que negociaram o apoio ao petista. Mostraram o que têm, ou, sobretudo, o que, de vez, não têm, para vender. Esvai-se o sonho do situacionismo de que, no segundo turno, o PMDB e o PFL podem sair do fundo do telão, realinharem-se e imporem uma sova de ultimíssima hora a Lula.
O coronelato político se desbaratou de verdade frente à Lei Jobim e o freio à malandragem das ditas "alianças informais". Costuram-se, mas não se as desfaz, num processo que não se desbarata para o segundo turno. Em muitos dos Estados concorre um PT que pode ganhar, e já tem um dos dois grotões ao seu lado, ou os restos de um PMDB ou PFL, que precisam do partido de Lula para derrubar, de vez, o contendor. Em tempos de modernização, não se refaz mais a certeza de uma aliança inconsútil, que junte os partidos dos mundéus, numa atropelada contra a consciência do Brasil de fundo.
Doutra parte, no que cabe, no novo jogo aos grandes eleitores mais que às legendas, sua força, neste pleito, não se transfere, coesa, a qualquer dos candidatos remanescentes. Tal como o PPS de Roberto Freire, primeiro capital eleitoral de Ciro, que já aderiu explicitamente a Lula, é inconcebível que os neogrotões de Collor, ou a sua velha tropa de choque possam ir ao petista. Nem há como imaginar que o açodo brizoleiro, em bem do ganhador, junte as suas alimárias à tropa magra do situacionismo federal, em novo escrutínio.
O dado mais importante do primeiro turno é o de atentar-se ao quanto às candidaturas a Governos Estaduais pelo PT, fora de eleitorado nanico, constituem já, senão a primeira, a segunda força nestas eleições, quebrando a dualidade PFL-PMDB, como decisores, afinal, do Brasil de sempre, contra quem queira modificá-lo. É o caso de Minas Gerais com Nilmario Miranda; de Geraldo Magela, no Distrito Federal, apeando Joaquim Roriz do mando de soba; do Pará; de Santa Catarina onde Fritsh tornou-se o árbitro entre os dois grotões.
Importa, sobretudo, o recado sem volta que Jaques Wagner deu a ACM, deixando o seu candidato com apenas mais 10% que o petista, e acabando com o último dos votos "arrasa quarteirão" do velho coronelismo político brasileiro.
Claro, como diferencial autônomo na gangorra, fica o neo-hamletismo de Garotinho. Precisa de Lula para atender aos cuidados da consorte governadora, escapada por um fio da contenda com Benedita, beneficiária do maior voto do "espírito das ruas", na reta final da campanha. O moço campista não terá como evitar - tal como o Brizolismo histórico - a aliança com o petista, pelo genoma ideológico do PSB.
Vai, por força, também, faturar a sua quermesse política, forçando o voto evangélico, a qualquer guinada. Tem o neocabresto populista para isso, e não se pode permitir, a bem do que vê como o seu largo prazo de liderança, o apoio ao Planalto, que profligou durante a campanha, para além do que possa a trefeguice, por sobre as lógicas mínimas de uma candidatura hibernada, e não dispersa ao vento de todos os rumos, como a de Ciro Gomes.
Após o 6 de outubro, uma segunda rodada não apaga os números da lousa. Precisa, sim, o racha bom em que já se definiu com seus grandes números uma opção entre dois Brasis. Formigam as mãos dos especialistas do País, com os seus quintais remanescentes de votos, que pensam poder reavaliar preços, na volta ao mercado. Em vão alimentarão os bem pensantes do velho sistema, que se trata, agora, de mera rearrumação do status quo, como o mote da nova corrida às urnas. Está-se, sim, diante de uma maratona, onde contam todos os ganhos da primeira volta. E a distância aí está, já - avassaladora - entre os dois Brasis.
Jornal do Commercio (RJ) 11/10/2002