Alguns de vocês (a maioria, meu Deus do céu?) é capaz de não suportar jornalistas e, portanto, achar merecido o que passamos, em horas, por exemplo, como estas que atravesso, tendo de já ter escrito sobre uma final de copa sem ter visto nem um lancezinho. E em que circunstâncias, meu caro senhor? Nas mesmas efetivadas no dia do jogo com a Inglaterra, na hora em que alguém inventou que só ganharíamos o jogo se o assistíssemos no boteco, com o resultado de que o boteco ficou entupido de gente exaltadíssima para ver o jogo já por volta das oito horas - e vocês podem muito bem imaginar o que aconteceu devido a isso, eis que diversos companheiros tiveram que ser reconduzidos às suas residências bem antes de o jogo começar.
Mas observamos tudo, dos atos às posições e lugares ocupados por todos, às roupas usadas e a tudo mais que é indispensável. Eu, que (de vez em quando me atacam essas maluquices) me meti num regime de água-de-coco, tive de beber, das pelo menos 18 jarras de água-de-coco que Chico, o dono do estabelecimento, botou na minha frente. Claro, que, apesar de em horário bem mais misericordioso, o jogo com a Turquia (tive pesadelos anteriores em que a final da Copa era disputada entre a Croácia e a Arábia Saudita) requeria providências à altura de quem, tão sacrificadamente, triunfara sobre os ingleses, depois de o Lúcio ter praticamente aberto o marcador. Somente nossas artes sofisticadas, somadas, é claro, às de milhões de outros brasileiros, foram capazes de dobrar aqueles britânicos enormes, que não iam fazer mais nada depois do gol, como patentemente planejaram agir.
Novamente o cenário era o bravo boteco Tio Sam, minha camisa era a mesma, já me esperava uma jarra de coco em frente à minha cadeira e os torcedores já conheciam seus deveres. Mas, mesmo em momentos tão bem engendrados, há imprevistos, novatos, convidados, gritos novos, roupas esquisitas e assim por diante, de maneira que os esquadrões antipés-frios, os famosos escovões, ficaram logo prontos e, em algumas ocasiões, quase foram chamados à ação. Jogo muito mais duro do que a gente pensava, pra nunca menos que 10 jarras de água-de-coco, em meu caso, e 40 pqps por minuto soltadas em berros assombrosos por um companheiro de cujo nome não quero lembrar agora - a senhôra dele é muito rigorosa. Novamente o povo cumpriu sua obrigação e chegou até a achar que Ronaldinho, com gol e tudo, não está mesmo com pinta de bichado e até que dá para opinar que a zaga brasileira não é artilheira adversária. O resultado da semifinal não chegou assim a deixar ninguém no Tio Sam empolgado, mas deu para o gasto. Chato seria mesmo perder para a Turquia que, com todo o respeito, não é nenhuma Alemanha, tendo a possibilidade de ir a uma primeira final com essa mesma Alemanha.
Essa mesma Alemanha, palavras que ecoam clangorosas em meu crânio, sem que eu saiba que destino as dar. No máximo, enquanto você consegue, se consegue, ler este jornal antes do jogo, eu tenho que escrever com antecedência, não importa quão curta, mas antecedência, muito mais antecedência do que se já deram as cinco horas da manhã. O quê? Você não acordou às cinco para esperar o jogo? Há pessoas com nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração. Eu já estou na sexta água-de-coco. E, por outra, já começou o jogo? Começou? Já teve gol? Ronaldinho Gaúcho aprontou alguma aê? Ronaldinho Ronaldão está acreditando mais nas pernas? Hem? Já estamos na metade e o jogo empatado em zero a zero? O alemão com cara de Schwarzenegger acertou Rivaldo? Sua Senhoria deu cartão a algum brasileiro? Angústia absoluta. Também esta jarra de água-de-coco está vazia, como se pode esperar um bom panorama deste jeito?
Os alemães, ah os alemães! Em relação à entrada na Copa, estão bem abaixo dos brasileiros, porque, se nos classificamos aos trancos e barrancos, sem confiar ou acreditar, eles foram mais longe e vieram de uma repescagem na Austrália. Se, para essas trajetórias inicialmente inglórias, as futuras glórias parecem inversamente proporcionais, eles aparentemente levam vantagem. Mas é só pensar que eles nunca levaram uma tunda de Honduras, nem se ensaiaram para declarar a Venezuela a nova grande potência do futebol mundial, é suficiente para erguer o nosso moral. Nesse departamento com a gente não sobra nem a Noruega jogando com time amador e arrastando bacalhau nas costas, não tem para ninguém. Tem que pensar em tudo nestas horas, tem que pensar em tudo, não pode deixar passar nada, que os orixás do futebol não perdoam, tem de lembrar as coisas para eles.
Bem, a triste verdade é que esta crônica está saindo bem no dia da decisão, algumas horas antes da decisão e eu não sei quem ganhou. Você, ou já sabe, ou já está começando a saber, ou vai saber daqui a 145 segundos, miserável! Só estou seguro de uma coisa: a turma do Tio Sam não há de ter falhado em nada, tenho certeza de que cumprimos a nossa parte com denodo acima de nossas forças. Beber 28 jarras de água-de-coco é um verdadeiro grito de Ipiranga, em termos heróicos. Dar centenas de pqps em poucos minutos é coisa para nenhum sargento de Napoleão se gabar. O povo brasileiro, também com absoluta certeza, cumpriu sua parte. Portanto, se ganhamos, essa estrovenga é nossa, somos cada um pentacampeão, fomos nós, o povo. Aliás, ganhamos, não ganhamos? Vocês estão de gozação comigo, nós ganhamos e ganhamos bem, não foi? Bom (t’esconjuro), se não ganhamos (t’esconjuro outra vez), a culpa, naturalmente, é do governo e somos pelo menos vencedores morais. Perder nós só perdemos no Congresso Nacional.
O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 30/06/2002