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Se o Brasil precisar

 

De modo geral, pode-se dizer que a convocação feita por Dunga foi bem recebida em Itaparica. A exceção mais notável fica por conta da, no ver de muitos, flagrantemente injusta não-inclusão de Obina entre os convocados. Como sabe qualquer um que acompanhe o futebol, Obina é natural do progressista distrito de Baiacu, situado na contracosta da ilha. Não foram ventiladas suspeitas contra a integridade de Dunga, mas formularam-se as habituais denúncias de discriminação contra nós e o Nordeste. Se bem que Ary de Almiro, que é filósofo e sabe coisas de que Deus duvida, tenha observado que se trata de um problema jurídico.


- Obina ainda não se naturalizou, o problema deve ser esse – disse Ary. – Eu vi dona Dilma explicando que os nordestinos saem daqui do Nordeste para ir para o Brasil. Obina já entrou no Brasil desde o tempo em que foi jogar no Flamengo, mas deve ter esquecido de se naturalizar e aí Dunga não pôde fazer a convocação.


Instaurou-se certa controvérsia em relação a esse ponto, havendo alguns indagado como era mesmo esse negócio, já que o Brasil começou no Nordeste, mas Ary, que nunca se apertou e sempre emprega uns argumentos misteriosos, respondeu que o próprio presidente nasceu no Nordeste e não seria nada, se não tivesse emigrado para o Brasil e, é claro, se naturalizado brasileiro. Ninguém entendeu muito bem a linha de raciocínio dele, mas filósofo é assim mesmo difícil de compreender e, por via das dúvidas, Luiz Olegarino ficou de dar um pulo ao Baiacu, para falar com o pessoal do Obina sobre esse problema da naturalização.


A discussão pegou mais corpo com a chegada de Zecamunista, regressando de mais uma bem-sucedida turnê de carteado por algumas das cidades mais prósperas da Bahia. Veio no saveiro Proletário, nome que deu ao antigo Chora na Rampa, ganho numa eletrizante rodada de pôquer em Santo Antônio de Jesus. Assim que desembarcou, se dirigiu ao Bar de Espanha e, lá sabendo da ausência de Obina na lista dos convocados, anunciou que publicaria um editorial sobre o assunto, tão logo começasse a sair o novo jornal que planeja fundar, o Clamor da Massa.


- Eu já estava pensando num editorial assim – disse ele. – Precisava somente de um gancho e agora achei. O título eu já bolei, é inspirado no “sífu” do presidente da República. Ele diz “sífu” e eu replico “tâmusfu”. E tamos mesmo, porque isto aqui, vamos reconhecer, como dizia o finado Sorriso de Desdém, que sempre usava belas palavras, é o ânus do orbe. Eu vou mostrar no editorial a nossa triste situação, aqui no Nordeste. O brasileiro sonha em emigrar para os Estados Unidos e o nordestino sonha em emigrar para o Brasil. Tamos ou não tâmusfu? Só não vai ser o primeiro editorial, porque o primeiro já está escrito e o título é “Tudo bem com o verde, mas cadê o amarelo?”, em que eu vou iniciar uma campanha pela adoção de cotas para a raça amarela, não podemos esquecer nenhuma minoria.


E não só de Obina vive o futebol da ilha. Creio que podemos prestar valiosa assessoria à seleção, a começar pelo patriotismo guerreiro. Num jogo contra a Holanda, por exemplo, se alguém apenas acenar uma bandeira itaparicana nas arquibancadas, o time holandês treme e é bem possível que nem entre em campo. Até hoje, uma ilhota em frente a Itaparica é chamada Ilha do Medo porque, em 1648, os holandeses se esconderam lá, para não levarem mais cacete de nossos ancestrais. E que venham portugueses e franceses. Gostamos muito dos portugueses e o finado Isaías Boa Fala deixou inúmeros amigos, mas guerra é guerra e eles não haverão de ter esquecido o tempo das lutas pela Independência, em que os obrigamos a se retirar e ir oprimir em outra freguesia. Quanto aos franceses, cala-te boca, perguntem às francesas.


Exemplos pessoais de heroísmo futebolístico também abundam. Para citar somente um caso célebre, recordo o desempenho de Vavá Paparrão, jogando como ponta-direita na equipe do São Lourenço, aqui da ilha, contra uma façanhuda e temida equipe de Maragogipe. Eu não assisti, mas o próprio Vavá me contou que fez os dois gols do São Lourenço, um deles logo após cobrar um escanteio. Mas o principal não foi isso, gol qualquer um faz. O principal foi que Vavá quebrou a perna em dois lugares e isso só foi descoberto depois que o jogo acabou, é o que estou lhes dizendo. Claro, ele sentiu umas beliscadinhas na canela, mas, sabem como é, no calor da refrega o sujeito não dá atenção a essas coisinhas, notadamente quando está em jogo sua terra. Só quando ele saiu é que a perna falhou e dr. Borba viu logo que a tíbia tinha sido fraturada. Um gessozinho e foi tudo resolvido, o importante era o troféu.


No que se refere a manobras extracampo, tão relevantes para qualquer disputa, temos também vasto know-how à disposição. Lembro apenas a magistral operação realizada antes de um jogo decisivo entre o mesmo São Lourenço e o saudoso Ideal Esporte Clube, cujo único goleiro jogava de óculos de grau. João Baguinha penetrou no vestiário, que ficava numa pensão perto do campo, e escondeu os óculos. Claro que o São Lourenço ganhou por mérito, até porque nessa época eu defendia suas cores, na zaga e sob a alcunha de Delegado, mas manda a honestidade reconhecer que, com o goleiro procurando a bola pelo tato, a coisa é um pouco facilitada para o ataque adversário. E, quando, na hora de um pênalti que ia empatar o jogo contra nós, Bertinho Penico sacou da garrucha, deu um tiro na também única bola e acabou com o jogo? É verdade, temos muito a oferecer aos guerreiros de Dunga. Basta a d. Dilma prometer que, se eleita, aceita Itaparica no Brasil.


O Globo, 16/5/2010