Não apenas as sanções econômicas, instrumentos eficazes e necessários, atingem a Rússia, mas também as culturais, importante “soft power” do país. Essas, descabidas. A Rússia trata muito bem seus escritores, pelo menos os mortos. Dostoiévski, Gorky, Tolstói, Tchekhov, Gogol, e, sobretudo, Alexandre Pushkin, poeta considerado o precursor da moderna novela russa, são figuras que dominam as ruas e praças das principais cidades da Rússia, especialmente Moscou e São Petersburgo, terra de Putin. Os locais onde moraram tornaram-se quase todos museus. Mas o mundo está tratando os escritores e artistas russos, do século XIX e os atuais, de uma maneira insana, como se a invasão da Ucrânia transformasse todo artista russo, vivo ou morto, em inimigo da Humanidade, e não seu patrimônio.
As famosas “noites brancas”, que dão o título e a ambientação de um romance de Dostoiévski, tornam o meio do ano em atração turística a mais em regiões do hemisfério norte, momento em que o sol está mais próximo da Terra. Em São Petersburgo, a casa de Dostoiévski é outra atração muito visitada, mas, no momento, um dos maiores escritores russos está sendo “cancelado” em diversos pontos do planeta.
Como noticiam as agências internacionais, na Itália, a Universidade de Milão-Bicocca tentou cancelar um curso sobre sua obra, mas teve que recuar. Em Gênova, foi desmarcado um festival de música e literatura russas dedicado a Dostoiévski, por ter o patrocínio do consulado da Rússia. Uma estátua do autor de “Crime e Castigo” quase foi derrubada em Florença, mas o prefeito resistiu, alegando que apagar séculos da cultura russa não deteria a escalada de Putin.
Mas Dario Nardella fez um comentário que mostra bem que mesmo quem está do lado certo comete equívocos nessa guerra de desinformação. Disse ele: "Parece que chegamos a um nível de histeria contra cidadãos russos que não têm nenhuma culpa de ter nascido na Rússia." Melhor diria que não têm nenhuma culpa de terem Putin como presidente. Ao contrário, terem nascido na Rússia é parte intrínseca do mérito de suas obras.
A estratégia de Putin de levar novamente a Rússia ao protagonismo internacional, explícita em um discurso de 2005, quando se referiu ao fim da União Soviética, em 1991, como “a maior catástrofe geopolítica do século XX”, está indo por água abaixo. O historiador russo Dmitri Trenin, do Carnegie Moscow Center, em palestra no Cebri anos atrás, já dizia que a maior área geográfica do planeta se sentia traída pela União Européia, que atraiu seus ex-satélites.
Para ele, a ambição original pós-comunismo era uma integração com União Européia, desde a reunificação da Alemanha em 1990. O único pleito russo, feito pelo então Ministro das Relações Exteriores da Rússia Eduard Shevardnadze a Helmut Kohl, chanceler da Alemanha, foi não ampliar o Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O compromisso foi rompido no governo de George W. Bush, e a OTAN cresceu muito. Foram-se os tempos em que Bush e Putin dançavam ao som de músicas típicas russas, conforme um vídeo que corre pela internet.
No entanto, ao invadir a Ucrânia, como bem lembrou o ex-chanceler brasileiro Celso Lafer na Globonews, a Rússia rompeu o Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança, acordo político cujos signatários originais foram a Rússia, os Estados Unidos e o Reino Unido, em dezembro de 1994. Mais tarde China e França aderiram ao tratado. Na anexação da Crimeia em 2014, os Estados Unidos já advertira a Russia de que aquele tratado estava sendo rompido.
O acordo dava à Ucrânia garantias para que assinasse o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, inclusive contra “ameaças ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política da Ucrânia”, assim como as da Bielorrússia e do Cazaquistão. Os dois últimos hoje são governados por aliados de Putin. Em contrapartida, a Ucrânia cedeu o terceiro maior arsenal de armas nucleares do mundo entre 1994 e 1996.