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Sabedoria de Athayde

 

Até hoje, o nome de Austregésilo de Athayde é pronunciado com muito respeito na seara cultural. Foi um belíssimo orador, valorizando a arte de falar, que dominou como poucos. Tinha um poder especial sobre as plateias que o ouviam, com um certo embevecimento, pois construía frases de efeito utilizando, em geral, o seu vasto conhecimento sobre a Grécia e os seus mitos. De uma feita, homenageado em São Paulo, pediu a palavra antes do jantar e se prolongou muito, para desespero da dona da casa. Com delicadeza, chamei sua atenção. A resposta foi dada para que todos pudessem ouvir: “Não vim aqui para comer. Podem começar a servir que eu vou continuar falando até cansar...” Praticamente, perdeu o delicioso jantar.

 

Um dos privilégios da minha vida foi ter convivido, por muitos anos, com o grande presidente da Academia Brasileira de Letras, jornalista Austregésilo de Athayde. Dele recebi admiráveis lições, que não saem da minha memória. Uma delas foi a tolerância com os detratores da instituição, muitos deles escritores frustrados. Quando lhe perguntei a causa dessas críticas, ele me olhou com a complacência dos mais velhos, e disparou: “Não se preocupe com isso, meu filho. Assim que eles entram para a Academia, mudam de opinião.”


Athayde, além de belíssimo orador, era um sábio. Tinha fortes conhecimentos bíblicos e os demonstrava, vezes sem conta, nas crônicas diárias do Jornal do Commercio. Uma delas guardei comigo, para ler e reler sempre. Data: 10 de setembro de 1992. Referia-se à sabedoria do rei Salomão, o filho de David. São suas palavras: “Para se conhecer a sabedoria e a instrução; para se entender as palavras da inteligência; para se instruir em sábios procedimentos, em retidão, justiça e equidade; para se dar aos simples prudência e aos jovens conhecimento e bom siso, ouça também os sábios e cresça em ciência.” Lembrava, assim, as lições do Eclesiaste.

 

Mais adiante, Athayde, que gostava de discutir os conceitos das crônicas com os seus mais íntimos, prossegue: “O temor de Deus é o princípio da sabedoria. Mas os insensatos desprezam a sabedoria e a instrução.” Aqui, o escritor pernambucano parava para recordar os seus tempos do Seminário da Prainha, onde, segundo ele, pôde sedimentar os fundamentos da sua vasta cultura, que alcançava com propriedade a língua latina. Costumava discutir com outro acadêmico ilustre, Abgar Renault, a atualidade de certas expressões latinas, além de capítulos inteiros da obra de William Shakespeare. À época, é claro, não havia computador, muito menos Google, para refrescar a memória. Tudo saía dos neurônios privilegiados de dois homens cultos, que os mais novos aplaudiam, admirados.


Voltando à crônica referida, de 1992, Athayde citava Salomão, com toda naturalidade: “Porque o Senhor dá a sabedoria: de sua boca procedem o entendimento e o conhecimento. Ele reserva a verdadeira sabedoria para os retos como escudo para os que caminham em integridade, guardando as veredas da justiça e preservando as estradas dos seus santos.”


Ele pedia ao final do artigo que meditássemos e observássemos tais conceitos, não sem que antes fôssemos tomados por um grande espanto: Athayde se confessava agnóstico, embora tivesse a esposa profundamente religiosa e muito amada. Incoerência do grande tribuno ou uma certa dissimulação, mais charme do que razão?

Num fim de tarde, na ABL, onde ele ia todos os dias, religiosamente, tomei coragem diante do velho Bruxo e perguntei-lhe as razões objetivas de não acreditar em Deus, ele que defendera a colocação do Seu nome, na abertura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que fora o principal redator. Sabem qual foi a resposta? A lista completa de todas as obras de Shakespeare, por ordem cronológica. De fato, não adiantava insistir.


Correio Braziliense, 13/9/2010