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Rumo à Sorbonne tropical

 

O ano França-Brasil está permitindo, em encontro inédito, um novo horizonte de cooperação, em nível universitário, entre os dois países. A Sorbonne nouvelle vai ouvir o depoimento de 12 reitores brasileiros, a partir do desenho geral da nossa nova política pública de ensino superior, por iniciativa do Secretário Geral do Sesu, Nelson Maculan. Recolheremos a contrapartida francesa, no empenho desenvolvido pelo presidente da Paris III, Bernard Bosredon, voz, hoje, de importância tão estratégica na completa reavaliação e prospectiva desta colaboração internacional.


Uma conquista-chave desse esforço conjunto será a entrada das universidades brasileiras no acordo de Bolonha pela iniciativa da União Européia, que permitirá o reconhecimento imediato e multiplicado dos diplomas brasileiros em todo o continente, participante dos Tratados de Mastrich e de Nice. Ao debate do dia 27, na Sorbonne, buscando as vistas cruzadas, dos campos de cá e de lá do Atlântico, soma-se já a ampla discussão da rede tecnológica de troca de suporte desse conhecimento, bolsa de estudo e cooperação, que devemos ao denodo continuado de Paulo Alcântara.


Às reuniões de Paris segue-se a de Marselha, tendo em vista a forte presença de universidades do sul da França, em laço histórico com o Brasil. Vamos adiante, nesta revitalização dos contatos entre os dois países, assinalado pela recuperação notável do ensino de francês nos cursos secundários, pelo esforço da Aliança Francesa. Mas esse enlace quer-se para além de uma estrita idéia de francofonia, ou do avanço do conhecimento lingüístico. Sua queda, no último decênio, levou, inclusive, à eliminação desse idioma para acesso ao Itamaraty.


As reuniões da próxima semana desdobram-se, por aí mesmo, na afirmação de uma raiz mais funda, que vincula a cultura e nos põe diante de um mesmo interrrogante sobre o futuro da latinidade. Ou seja, de uma matriz identitária que nos mergulha nesta constância histórica em que a nossa Independência reportou-se, através do Patriarca José Bonifácio à Montpellier como inspiradora da primeira elite imperial. Mas foi à Paris toda a marca da belle époque, a comandar a vida do espírito brasileiro, até ao quase mimetismo em que a nossa Academia de Letras repetiu a francesa, e a presença do influxo parisiense não só comandou o gosto da Velha República, mas a inspiração da própria Semana de Arte Moderna, inseparável da presença animadora do franco-suíço Blaise Cendrars. A influencia da Sorbonne, na reformulação da USP, deu-nos a melhor modernidade da tradição de Levi-Strauss, Roger Caillois e Fernand Brandel.


Na virada do novo século associa-se o Brasil à França, dentro desta visão larga da latinidade voltada para as Caraíbas. O debate se debruça sobre um esforço comum, em prol da intelectualidade do Haiti, cujo Primeiro Ministro Gerard la Tortue pede às nações de mesma marca histórica, o auxílio mais importante do que uma política maciça de dinheiros, remédios e alimentos: a do reforço à vida do espírito e a força identitária haitiana, neste mundo da latinidade. Foi sobre o modelo francês que se criou a primeira independência do Continente, com a simultânea abolição dos escravos por Toussant l"Ouverture, Dessalines ou Pethion.


A inspiração simbólica de Napoleão comandou as primeiras lideranças do país que se viram como imperiais, reproduzindo inclusive o fasto da Corte parisiense. A raiz perdura no Haiti, que resistiu às invasões americanas, como hoje quer reafirmar a sua identidade frente à gigantesca favelização da capital, de par com o campo aberto à rotina da violência.


A cooperação universitária franco-brasileira deve se desdobrar, após os Acordos de Paris, em Port au Prince. Mas é sobretudo diante da Guiana que toda a visão de uma latinidade caribenha pode reunir o Brasil a esta França Antártica, a partir de Caiena. Nela hoje se encontra a Universidade Paris 14, ou a única Sorbonne tropical com toda a força logística a que se soma a iniciativa e o horizonte de Jean Michel Blanquer. Reitor da Guiana, o antigo Diretor Geral do Instituto de Altos Estudos Latino-americanos, com todo o preparo de uma aguda visão internacional, para o que venha a representar um primeiro esforço continuado de cooperação das universidades brasileiras com a única França continental no Hemisfério.


Aos acordos regionais com o Amapá, o Pará e o Amazonas somam-se, hoje, os programas de intercambio com Brasília e, sobretudo, com a oferta de colaboração múltipla das 19 universidades componentes do Fórum de Reitores do Rio de Janeiro. E é por uma agenda de pesquisas que deve começar esse esforço comum, voltado para problema crítico no plano dos levantamentos e do estudo das Ciências Sociais. É ele o de saber-se do porte e do impacto dessas levas de brasileiros ao sul da Guiana, ainda no quadro de uma expansão clandestina de suas migrações fronteiriças. Mas que hoje já começam a compor um contributo marcado sobre a nova constelação identitária da Guiana. Nela somam-se seus autóctones, os "marrons" da aculturação negro-escrava, as levas da diáspora criadora haitiana, e a histórica residência dos franceses metropolitanos.


Este influxo brasileiro hoje chega à própria Caiena até, inclusive, na desestabilização da sua vida urbana pelos "novos ricos" brasileiros como, sobretudo, pela nossa nova marca inconfundível: a dos evangelismos de massa, dos pastores do Reino de Deus, suas litanias, seu aliciamento, sua penetração nítida nos grupos destituídos da capital.


Apenas começamos, na busca dessas convergências, no próprio chão latino-americano e nesta cooperação França-Brasil. Mas ela tem já o dom de uma prospectiva sobre os meros recenseamentos históricos, senão nostálgicos, desta extrema precariedade com que até hoje o país-continente olhou para o Caribe. A agenda que se inicia nesta semana tem a vantagem de sair da convenção metropolitana para novos "olhos de ver". O reconhecimento de uma latinidade comum só fortalece uma política internacional das diferenças, no mundo ameaçado pelas hegemonias, na sua avalanche mediática, e nos simulacros da cultura.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 17/06/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 17/06/2005