Em dezenas de seminários internacionais sobre literatura brasileira, de que participei, estive inúmeras vezes com dois professores estrangeiros apaixonados pelas nossas letras, e deles fiquei amigo. Foram o norte-americano William Grossman, professor na Universidade de Nova York, e o alemão Kurt Meyer-Clason, professor na Universidade de Munique.
Grossman criou a cátedra Machado de Assis em Nova York, Meyer-Clason traduziu Guimarães Rosa para o alemão e trocou um sem-número de cartas com Rosa sobre problemas que teve ao traduzi-lo.
Numa demonstração de seu amor à nossa literatura, disse Meyer-Clason, num congresso em Lyon (1982), em que nos sentamos lado a lado, esta frase: "Fernando Pessoa afirmou que sua pátria era a língua portuguesa. De mim, posso dizer que minha pátria é a literatura brasileira". E na verdade em todos os seminários em que estivemos juntos, muitas foram as intervenções que fez, realçando este ou aquele escritor brasileiro. Seu principal assunto era, porém, Guimarães Rosa.
Em outro congresso, este na Holanda, Kurt fez uma conferência inteira sobre "A terceira margem do rio", que considerava a melhor narrativa curta que lera em muitos anos em qualquer idioma. Primeiro falou na idéia, de um homem haver resolvido morar num barco que passou a ser sua casa, sem nunca desembarcar, com isto criando uma terceira margem, fora das outras duas, nas quais deixou de pôr os pés, com os limites de sua embarcação formando sua margem particular, seu mundo pessoal, navegando sobre o rio, este sendo seu chão.
Citou frase de André Maurois que lera num texto de Rosa: "Um rio sem margens é o ideal do peixe" - e acrescentou que havia um significado num rio com uma terceira margem, esta sendo margem exclusiva de quem navega sem parar, ou pára quando quer sobre seu chão líquido, naquela escolha de um terreno limitado e, ao mesmo tempo, ilimitado em que as palavras brotam do vento e acompanham a movimentação do barco, incessante, inesperada, indo para aqui, para lá, aproximando-se do lugar em que vivera, do filho que de longe segue os movimentos da embarcação, esta sendo um mundo completo em si e sendo um nada ou tutaméia, como diz Rosa em outros contextos.
E Kurt Meyer-Clason elucidando para uma platéia diversificada o modo como Rosa escreve, descreve, narra, desnarra, como Kurt falava em inglês, as vezes com palavras alemãs, passei a ouvir a narrativa de Rosa como se estivesse num mundo à parte, com a voz do amigo alemão nos guiando todos ao longo daquela narração líquida, sólida, acima de tudo vigorosa, como se ele nos ensinasse por que existem as palavras, para que servem, como nascem, como soam e como ficam dentro de nós, individualmente e como parte de um significado, uma narração, uma exaltação, um novo entendimento das coisas e de nós mesmos.
A pesquisa cuidadosa de cada palavra de Rosa, por Kurt, e do estilo em que as palavras se colocavam, apareceu nas muitas cartas que o tradutor escreveu ao autor, como também nas respostas minuciosas de Rosa, que às vezes se detinha numa sílaba para chamar a atenção do motivo pelo qual a usou ou aparentemente desusou.
Mostrou-me Kurt muitas dessas cartas, em que está por inteiro o escritor João Guimarães Rosa, no cuidado como analisava um simples som e no modo como explicava a linguagem que ouvira em Cordisburgo na infância e de que extraiu muito da força de um idioma que já antes de Camões dizia ao que viera e que, em pleno momento do nascimento do Brasil, pela pena de Pêro Vaz de Caminha, nos deixava uma lição de estilística narrativa que de certa maneira previa o que Rosa viria a fazer quatro séculos e meio depois.
Agora que vamos entrar em duas comemorações rosianas - uma, já este ano, pelos 50 anos de "Grande Sertão: Veredas" e a outra, dentro de dois anos, pelo centenário de nascimento (1906-1967) - teremos um bom período de análise de sua obra. Analisaremos - ou reanalisaremos, pois tanta coisa deve lá estar escondida ainda inclusive "A terceira margem do Rio", tomando nota da explicação inicial do filho quando diz que o pai encomendara uma canoa especial, de pau de vinhático.
Explicou mais: "a canoa teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água uns vinte ou trinta anos". O filho descreve o embarque: "Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa." E o pai nunca mais abandonou a terceira margem, a água batendo na beira da canoa, para sempre.
Nova edição de "Primeiras estórias", em que se encontra "A terceira margem", é da Nova Fronteira, que reproduz poema de Carlos Drummond de Andrade, cujos três últimos versos são estes: "Ficamos sem saber o que era João/ e se João existiu/ de se pegar." Prefácio de Alberto da Costa e Silva. Ensaio de Paulo Rónai. Edição de Izabel Aleixo e Daniele Cajueiro. Capa e projeto gráfico de Victor Burton.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 07/03/2006